Brecht com Brown

Estudo de Roberta Estrela D'Alva mostra que a cultura hip-hop também está presente no teatro. Montagens levam para o palco elementos da música e dança urbanas, com forte pegada política

por 13/12/2014 00:13
Acervo Núcleo Bartolomeu
Acervo Núcleo Bartolomeu (foto: Acervo Núcleo Bartolomeu)
Ângela Faria


Bertolt Brecht (1898-1956) se junta às levadas de Mano Brown e Thaíde para fazer do teatro hip-hop uma instigante experiência no cenário das artes cênicas brasileiras. À bagagem milenar do ator se incorporaram o flow do MC (o mestre de cerimônias do rap), a potência comunicativa do b-boy dançarino e a antropofagia do DJ, o alquimista dos samplers. O livro Teatro hip-hop (Editora Perspectiva) relata como essa estética se desenvolveu nos palcos paulistanos por iniciativa do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, criado em 2000.

Uma das fundadoras do grupo, Roberta Estrela D’Alva revela muito mais que os bastidores de espetáculos do coletivo formado também por Claudia Schapira, Eugênio Lima e Luaa Gabanini. Guiados pelo ótimo texto da atriz – plenamente acessível a não iniciados em artes cênicas –, acompanhamos o surgimento de uma linguagem comprometida com desafios e inquietações do Brasil contemporâneo. Vale a pena xeretar na internet as cenas protagonizadas pela autora e seus companheiros.

Nas 60 páginas iniciais, Roberta explica o surgimento do hip-hop. É uma ótima aula, útil a todos os interessados em cultura urbana. A partir das periferias norte-americanas, rap, DJs, grafites, b-boys e b-girls se globalizaram. O MC, poeta oral que faz uso do microfone para verter sua vida em rap – ritmo e poesia –, cumpre a saga de trovadores medievais e de griots africanos.

“Periferia é periferia em qualquer lugar”, diz o MC brasileiro Gog, traduzindo a alma do rap, porta-voz dos excluídos. Duas características marcam esse canto falado — a autorrepresentação e o depoimento. A palavra é soberana, em diálogo constante com a base sonora construída sobre fragmentos musicais sampleados (ou reconfigurados) por DJs a bordo de seus toca-discos e computadores. Antigos LPs, cantores esquecidos e sons de outras culturas formam a matéria-prima da antropofágica polifonia regida pelo DJ. Com propriedade, Roberta lembra: hip-hop é também memória. E isso interessa aos palcos.

Compreendidas as matrizes da pulsante cultura urbana nascida de jamaicanos, latino-americanos e negros em Nova York, abrem-se as portas do Núcleo Bartolomeu para o leitor. Trata-se do primeiro grupo brasileiro de teatro hip-hop, estética também experimentada nos EUA. Por aqui, tudo começou em 1999, com a montagem Bartolomeu, que será que nele deu?, inspirada em Bartleby, the scrivener: a story of Wall Street, do americano Herman Melville. A atriz e diretora Claudia Schapira, ao assistir ao grupo de dança de rua Unidade Móvel, teve o insight: tamanha potência comunicativa expressava fisicamente aquilo a que ela pretendia dar texto e voz.

O processo de pesquisa para Bartolomeu... mixou fundamentos do teatro épico de Brecht. Atores dialogaram com dançarinos de rua para trazer aquela pulsação para o palco, interessados em traduzir a movimentação do universo urbano. Roberta explica como o “gestus social” brechtiano se somou a elementos da cultura urbana do fim do século 20 para gerar novas formas de expressão – sempre tendo a rua como fonte de inspiração.

Vieram várias peças com essa filosofia: Acordei que sonhava, baseada em texto de Pedro Calderón de la Barca (1600-1681); Frátria amada Brasil: Pequeno compêndio de lendas urbanas, inspirada na Odisseia, de Homero; a série 5 x 4 Particularidades coletivas; Cindi Hip-Hop: pequena ópera rap; Vai te catar!; Orfeu mestiço: Uma hip-hópera brasileira (que deu a Roberta Estrela D'Alva o Prêmio Shell de melhor atriz em 2012); e Antígona recortada: contos que cantam sobre pousos pássaros.

Ator-MC Roberta Estrela D’Alva nos oferece um “raio-x” das fascinantes experimentações estéticas do coletivo paulistano. O ator, agora ator-MC, é uma delas. O DNA desse artista híbrido traz características do ator épico mixadas ao autodidatismo e à contundência do MC que comanda shows de rap.
“Os pontos fundamentais dessa fusão são a autorrepresentação e o depoimento, que, como estruturas da narrativa, configuram-se como célula fundamental para a concepção dramatúrgica e a criação de personagens, discursos e de performances poéticas dentro do teatro hip-hop”, destaca a autora, bacharel em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em comunicação e semiótica pela PUC São Paulo.

Temos aqui uma outra categoria de intérprete. Incorporar em sua oralidade ritmo e gestual próprios da cultura hip-hop lhe confere novas possibilidades de atuação. O microfone – prolongamento do corpo e da voz do rapper – ganha destaque especial no teatro. É um signo. Essa descoberta foi tão marcante, que integrantes do coletivo passaram a atuar como DJs, outros compõem raps. Roberta e colegas participam e promovem competições de poesia falada em SP.

O nome do núcleo paulistano incorporou o compromisso com a estética que defende: o depoimento pessoal. Cada ator-MC traz algo de sua vida para o processo. Durante a elaboração da peça Acordei que sonhava, por exemplo, Paula Preta fez com que os colegas viajassem com ela no ônibus para chegar ao teatro, com direito a performance para passageiros, motorista e cobrador.

Classes e sample
Coração da estética hip-hop, o sample, com suas colagens, é matéria-prima para os atores-MCs. Roberta Estrela D’Alva explica como isso se deu na peça Acordei que sonhava. O personagem surgia iluminado pela luz azulada de uma TV, enquanto o tecido narrativo trazia vários elementos: a programação exibida no canal; a voz de Mano Brown no rap 12 de outubro; o trecho de um livro do ativista americano Mumia Abu-Jamal gravado em off; o figurino da atriz com tecidos nobres e tênis surrado comprado no camelô; o texto inspirado no original de Calderón de la Barca; e colagens de capas de revista que remetem a celas de presídio. Tudo isso potencializava o diálogo entre a linguagem barroca do dramaturgo espanhol que viveu no século 17 e as bricolagens dos anos 2000.

“O sample tem função metonímica, em que uma parte em combinação com outras partes recria o todo. O ator-MC tem o papel de reorganizar, traduzir e atualizar constantemente esse material em sua atuação”, explica Roberta. Passado e presente dividiram uma das cenas de A vida é sonho: o rei Basílio, com sua poética erudita, é contestado pelo príncipe Segismundo, que cita trechos de raps do Racionais MCs, Thaíde, DJ Hum e do grupo Z’África Brasil. Espadas e português arcaico de um lado; beats e revólveres de outro. No centro do palco, a eterna luta de classes – onipresente na história da humanidade.

Por falar em luta de classes, uma de suas versões – a especulação imobiliária – ameaça o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Despejado de sua sede, na Vila Pompeia, pela construtora que ali erguerá um edifício, o coletivo foi obrigado a interromper a temporada da peça Condomínio Nova Era. Atores-MCs sem-teto lutam para sobreviver. “Em São Paulo, Deus é uma nota de 100”, já cantou Mano Brown. Desta vez, a vida imita o rap.

TEATRO HIP-HOP
• De Roberta Estrela D’Alva
• Coleção Estudos
• Editora Perspectiva
• 152 páginas, R$ 37

MAIS SOBRE PENSAR