Bertolt Brecht (1898-1956) se junta às levadas de Mano Brown e Thaíde para fazer do teatro hip-hop uma instigante experiência no cenário das artes cênicas brasileiras. À bagagem milenar do ator se incorporaram o flow do MC (o mestre de cerimônias do rap), a potência comunicativa do b-boy dançarino e a antropofagia do DJ, o alquimista dos samplers. O livro Teatro hip-hop (Editora Perspectiva) relata como essa estética se desenvolveu nos palcos paulistanos por iniciativa do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, criado em 2000.
Nas 60 páginas iniciais, Roberta explica o surgimento do hip-hop. É uma ótima aula, útil a todos os interessados em cultura urbana. A partir das periferias norte-americanas, rap, DJs, grafites, b-boys e b-girls se globalizaram. O MC, poeta oral que faz uso do microfone para verter sua vida em rap – ritmo e poesia –, cumpre a saga de trovadores medievais e de griots africanos.
“Periferia é periferia em qualquer lugar”, diz o MC brasileiro Gog, traduzindo a alma do rap, porta-voz dos excluídos. Duas características marcam esse canto falado — a autorrepresentação e o depoimento. A palavra é soberana, em diálogo constante com a base sonora construída sobre fragmentos musicais sampleados (ou reconfigurados) por DJs a bordo de seus toca-discos e computadores. Antigos LPs, cantores esquecidos e sons de outras culturas formam a matéria-prima da antropofágica polifonia regida pelo DJ. Com propriedade, Roberta lembra: hip-hop é também memória. E isso interessa aos palcos.
Compreendidas as matrizes da pulsante cultura urbana nascida de jamaicanos, latino-americanos e negros em Nova York, abrem-se as portas do Núcleo Bartolomeu para o leitor. Trata-se do primeiro grupo brasileiro de teatro hip-hop, estética também experimentada nos EUA. Por aqui, tudo começou em 1999, com a montagem Bartolomeu, que será que nele deu?, inspirada em Bartleby, the scrivener: a story of Wall Street, do americano Herman Melville. A atriz e diretora Claudia Schapira, ao assistir ao grupo de dança de rua Unidade Móvel, teve o insight: tamanha potência comunicativa expressava fisicamente aquilo a que ela pretendia dar texto e voz.
O processo de pesquisa para Bartolomeu... mixou fundamentos do teatro épico de Brecht. Atores dialogaram com dançarinos de rua para trazer aquela pulsação para o palco, interessados em traduzir a movimentação do universo urbano. Roberta explica como o “gestus social” brechtiano se somou a elementos da cultura urbana do fim do século 20 para gerar novas formas de expressão – sempre tendo a rua como fonte de inspiração.
Vieram várias peças com essa filosofia: Acordei que sonhava, baseada em texto de Pedro Calderón de la Barca (1600-1681); Frátria amada Brasil: Pequeno compêndio de lendas urbanas, inspirada na Odisseia, de Homero; a série 5 x 4 Particularidades coletivas; Cindi Hip-Hop: pequena ópera rap; Vai te catar!; Orfeu mestiço: Uma hip-hópera brasileira (que deu a Roberta Estrela D'Alva o Prêmio Shell de melhor atriz em 2012); e Antígona recortada: contos que cantam sobre pousos pássaros.
Ator-MC Roberta Estrela D’Alva nos oferece um “raio-x” das fascinantes experimentações estéticas do coletivo paulistano. O ator, agora ator-MC, é uma delas. O DNA desse artista híbrido traz características do ator épico mixadas ao autodidatismo e à contundência do MC que comanda shows de rap.
“Os pontos fundamentais dessa fusão são a autorrepresentação e o depoimento, que, como estruturas da narrativa, configuram-se como célula fundamental para a concepção dramatúrgica e a criação de personagens, discursos e de performances poéticas dentro do teatro hip-hop”, destaca a autora, bacharel em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em comunicação e semiótica pela PUC São Paulo.
Temos aqui uma outra categoria de intérprete. Incorporar em sua oralidade ritmo e gestual próprios da cultura hip-hop lhe confere novas possibilidades de atuação. O microfone – prolongamento do corpo e da voz do rapper – ganha destaque especial no teatro. É um signo. Essa descoberta foi tão marcante, que integrantes do coletivo passaram a atuar como DJs, outros compõem raps. Roberta e colegas participam e promovem competições de poesia falada em SP.
O nome do núcleo paulistano incorporou o compromisso com a estética que defende: o depoimento pessoal. Cada ator-MC traz algo de sua vida para o processo. Durante a elaboração da peça Acordei que sonhava, por exemplo, Paula Preta fez com que os colegas viajassem com ela no ônibus para chegar ao teatro, com direito a performance para passageiros, motorista e cobrador.
Classes e sample Coração da estética hip-hop, o sample, com suas colagens, é matéria-prima para os atores-MCs. Roberta Estrela D’Alva explica como isso se deu na peça Acordei que sonhava. O personagem surgia iluminado pela luz azulada de uma TV, enquanto o tecido narrativo trazia vários elementos: a programação exibida no canal; a voz de Mano Brown no rap 12 de outubro; o trecho de um livro do ativista americano Mumia Abu-Jamal gravado em off; o figurino da atriz com tecidos nobres e tênis surrado comprado no camelô; o texto inspirado no original de Calderón de la Barca; e colagens de capas de revista que remetem a celas de presídio. Tudo isso potencializava o diálogo entre a linguagem barroca do dramaturgo espanhol que viveu no século 17 e as bricolagens dos anos 2000.
“O sample tem função metonímica, em que uma parte em combinação com outras partes recria o todo. O ator-MC tem o papel de reorganizar, traduzir e atualizar constantemente esse material em sua atuação”, explica Roberta. Passado e presente dividiram uma das cenas de A vida é sonho: o rei Basílio, com sua poética erudita, é contestado pelo príncipe Segismundo, que cita trechos de raps do Racionais MCs, Thaíde, DJ Hum e do grupo Z’África Brasil. Espadas e português arcaico de um lado; beats e revólveres de outro. No centro do palco, a eterna luta de classes – onipresente na história da humanidade.
Por falar em luta de classes, uma de suas versões – a especulação imobiliária – ameaça o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Despejado de sua sede, na Vila Pompeia, pela construtora que ali erguerá um edifício, o coletivo foi obrigado a interromper a temporada da peça Condomínio Nova Era. Atores-MCs sem-teto lutam para sobreviver. “Em São Paulo, Deus é uma nota de 100”, já cantou Mano Brown. Desta vez, a vida imita o rap.
TEATRO HIP-HOP
• De Roberta Estrela D’Alva
• Coleção Estudos
• Editora Perspectiva
• 152 páginas, R$ 37