Poesia da matéria

Em suas obras plásticas e textos, o artista e poeta ouro-pretano Guilherme Mansur abre diálogo sobre a identidade mineira, com intuições que vão do barroco ao modernismo

por 13/12/2014 00:13
Leandro Couri/EM/D.A Press
Leandro Couri/EM/D.A Press (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Anelito de Oliveira


Na obra multifacetada do poeta, designer e artista gráfico ouro-pretano Guilherme Mansur, destaca-se a instalação Quadriláxia, que vi, pela primeira vez, no Centro Cultural da UFMG em Belo Horizonte numa distante noite de 1991: uma lona preta estendida no piso de uma sala, com 49 folhas – creio – de papel brancas com letras impressas e partículas de minérios de ferro rigorosamente distribuídas sobre elas, configurando uma intrigante escrita material. O trabalho me causou logo a impressão de que algo de muito estranho estava se afirmando na cena poética então atual, de que dados inquietantes estavam sendo lançados – e de um modo radicalmente outro.

A instalação ambientava um evento sobre poesia que congregava expressões de vanguarda naquela Belo Horizonte, como o performático Vírus mundanus e Álvaro Andrade Garcia, que era uma referência na aproximação da criação poética tradicional, escrita, à informática, tudo ainda muito incipiente, mas visto com grande curiosidade, como “o novo”, naquele momento. Todavia, era aquela coisa aparentemente velha, expondo signos tridimensionais – ícones, índices, símbolos – de um dado território, Minas, que se me apresentava como a coisa mais nova ali – a instalação de Guilherme Mansur: o que era realmente aquilo?

Algo me levava a sentir que não era o que parecia ser, embora fosse também o que parecia ser – era e não era simultaneamente, não era apenas uma coisa ou outra, nada é “apenas” na poética de Mansur, como, muitos anos depois, ocorreu-me enunciar. Quadriláxia parecia ser apenas mais uma instalação pós-moderna, um procedimento, para lembrar os formalistas russos, já rotinizado àquela altura nas artes plásticas, algo concebido e efetivado no e para aquele momento, circunscrito a um espaço-tempo mínimo, plena imanência. Mas era, sem deixar de ser também isso, algo que se inscrevia num mais-além do presente com signos – ainda o paradoxo – de um mais-aquém do presente.

À medida que eu cultivava Quadriláxia, cada vez mais impressionado com o que tinha visto ali, um problema hermenêutico, interpretativo, muito fértil ia-se configurando, estimulado, sem dúvida, pela própria obra, à medida que esta trazia a sua poética-poema, o “Mapa (Ora direis ouvir estrelas) de Quadriláxia”, não a regra do jogo, mas antes o jogo da regra, um texto a revelar velando o método criativo do artista à Francis Ponge, também enamorado dos objetos. Quadriláxia constituía em si mesma uma cena de interpretação, era, intencionalmente, uma espécie de invenção-interpretante, não um constructo semiótico que se dispunha à interpretação de modo passivo, espontâneo.

A instalação denunciava, naquele 1991, um criador – não apenas um poeta, um artista plástico, um performer – altamente lúcido, que assumia que sabia o que estava fazendo, e esse saber, claro, era um saber possível, não todo saber, era um saber a partir de Minas, das Minas das pedras, das Minas dos minérios de ferro, das antigas Minas do Ouro Preto, era um saber, portanto, territorial, haurido na experiência espacial, histórico, como todo saber, mas algo mais que histórico: material.

Claro que um saber histórico não é necessariamente material, no sentido de implicado no mundo das coisas, de ser parte desse mundo também, o que explica, evidentemente, a ênfase de Carlos Drummond de Andrade no seu poema “Mãos dadas”: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. A ênfase se justifica: o tempo não é compreendido materialmente por todos, pelo contrário: o tempo é compreendido comumente a partir de uma perspectiva espiritual, a partir de um a priori idealista, uma compreensão hegemônica que nem experiências de vanguarda radicais superaram completamente ao longo do século 20.

Barroco e modernismo Quadriláxia é decididamente material, não como expressão arbitrária de um artista isolado, não por um mero desejo de chocar, mas como desdobramento de um processo estético que remonta ao Barroco e suas extensões arcádicas mineiras – o rasgo geográfico de Cláudio Manuel da Costa –, ao Modernismo – as lições de coisas de Drummond –, à engenharia pétrea de João Cabral e, especialmente, ao Haroldo de Campos das Galáxias: um fragmento de “Quadriláxia”, o redemoinho de letras, apareceu em 1990 na capa de Finismundo: a última viagem, edição do poema-livro do poeta paulista realizada por Guilherme Mansur em sua Tipografia do Fundo de Ouro Preto.

Dizer, a partir dessas articulações visíveis, que Quadriláxia é um caso de tradição e, mais ainda, da tradição de ruptura preconizada por Octavio Paz, é significativo, mas não é dizer tudo, melhor – se dizer tudo é sempre um desejo pretensioso demais –, não é dizer muito. A invenção-interpretante de Mansur vai além do visível ––, provoca a emergência do invisível que, como pensava Maurice Merleau-Ponty, é a própria profundidade do visível. Que profundidade era, e ainda é, essa?, é a questão, a minha questão pelo menos.

Quadriláxia é referência de um confronto de valores estéticos, culturais, econômicos, éticos e políticos atuais e inatuais pertencentes a tempos e lugares diferentes, que agora, entranhados na obra, maximizavam seu estranhamento. Mas o procedimento que ali se dá a ver, a gama de minérios de ferro sobre folhas brancas de papel sobre a lona preta, constituía um valor estético inatual, animado pelo fundo da história material mineira, que, assim mesmo, rivalizava com um outro procedimento que então se afirmava como atual, a instalação, configurando-se, no limite, um ruído entre procedimentos, no nível mesmo do como se faz, um atrito sutil, dir-se-ia, bem Mansur.

Nessa hibridação de um procedimento atual (instalação) com um procedimento inatual (minérios), estaria uma possibilidade de compreensão da profundidade de Quadriláxia, do invisível que sua visibilidade escura aguçava – eu intuía, e agora penso, sim: uma profundidade antagônica, em que elementos pré-modernos, modernos e pós-modernos se enfrentam numa cena identitária que não é, por sua vez, pessoal, não é a cena identitária de um indivíduo, mas de uma cultura, uma tensa cena reveladora de um território de caminhos pedregosos, para lembrar agora o Drummond d “A máquina do mundo”.

Certamente, nunca consegui me desvencilhar, sequer tentei, da primeira impressão que tive de Quadriláxia porque não vi ali apenas texto, literatura, poesia ou mesmo arte plástica, mas uma espécie de “metáfora de transformação”, no sentido postulado por Stuart Hall. ou seja, aquela que nos permite “imaginar o que aconteceria se os valores culturais predominantes fossem questionados e transformados, se as velhas hierarquias sociais fossem derrubadas, se os velhos padrões e normas desaparecessem ou fossem consumidos em um festival de revolução, e novos significados e valores, novas configurações socioculturais, começassem a surgir”.

Uma “metáfora de transformação” do espaço-Minas, Quadriláxia suscitava algo neste sentido, uma territorialização sensivelmente radical, a partir da origem mineral do território, que atualizava a condição barroca de uma coletividade histórica de modo instigante, livre dos lugares comuns discursivos, retóricos, com os quais uma tradição oficial, fundamentada numa ideia iluminista, colonialista, de cultura, que se mantém hegemônica em Minas Gerais desde meados do século 18, mascara a vida social.

Dignidade do material Guilherme Mansur, criador anti-retórico por excelência e intransigentemente poético – um fundamentalista da poesia, eu diria mesmo, como poucos ousam ser –, intensificará esse processo crítico que se apresenta em Quadriláxia, que entendo como sendo o de uma invenção-interpretante, em outros momentos, como na instalação “Tamen: terra salgada”, trabalho do início dos anos 2000, e, mais recentemente, na performance-poema “eu estou”, apresentada em Berlim no ano de 2011.

Esse processo informa, evidentemente, o artesanato editorial de Mansur, seu fazer tipográfico, bem como o seu design jornalístico ao longo de oito anos no Suplemento Literário de Minas Gerais, gestos que nos remetem diretamente a um artista com um senso depurado da matéria, que só se compreende de modo produtivo mesmo não em relação a poetas e escritores, não a partir do campo das letras, mas em relação ao campo das artes plásticas, especialmente da escultura, em relação a um artista singular, Amilcar de Castro.

A questão de Mansur, o ato de criação, é deixar emergir o sentido autêntico do material, não o sentido engenhoso do procedimento, um modo de fazer, uma poética, similar ao do escultor mineiro. Há uma dignidade do material – da pedra, do ferro, do papel, da tinta, da letra etc. – que não deve ser sacrificada em nome de nada, nem mesmo, no caso daquilo que se dirige a um grande público – um jornal, uma revista, uma logomarca, uma propaganda, um livro etc – em nome da comunicabilidade, do entendimento.

Preservar a dignidade do material, como me parece razoável pensar diante de Amilcar e Guilherme, é, fundamentalmente, uma atitude de resistência à padronização estética imposta pela indústria cultural, uma atitude animada pelo pressuposto de que deve haver lugar no mundo para o diferente, para o anormal, para o estranho, para o disforme, enfim, para tudo aquilo que constitui, ontem como hoje, o barroco.  

Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é pós-doutor em teoria literária pela Unicamp e doutor em literatura brasileira pela USP. Autor, entre outros, de A aurora das dobras (ensaio) e Transtorno (poesia).

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