Desejo de viver

Novo romance do escritor inglês Ian McEwan coloca em discussão o difícil conflito entre a ética e a justiça no âmbito do direito à vida

por 06/12/2014 00:13
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AFP/STR (foto: AFP/STR)
Fabio Guimarães Bensoussan

Nas últimas décadas, quatro amigos passaram a ocupar um lugar de destaque na literatura britânica: Salman Rushdie, Martin Amis, Ian McEwan e Christopher Hitchens. O quarteto se tornou um trio quando, em 2011, Hitchens morreu de câncer no esôfago. Nenhum deles fugia de uma polêmica – aliás, é difícil encontrar, hoje, um grupo de escritores tão dispostos ao debate público. Essa amizade se mostrou sincera e poderosa quando, em 1989, o aiatolá Khomeini condenou Rushdie à morte pelos seus Versos satânicos – uma amizade que aparece em seu recente Joseph Anton.

Um dos últimos livros de Hitchens foi Deus não é grande, onde critica a fé religiosa e defende a superioridade intelectual e moral do ateu. Reservou um capítulo para defender sua ideia da incompatibilidade da religião com a saúde, destacando a influência perversa exercida pela fé sobre políticas públicas. O livro foi dedicado ao seu grande amigo Ian, “cuja ficção mostra uma extraordinária habilidade em elucidar o divino sem nenhuma concessão ao sobrenatural. Ele sutilmente demonstrou que o natural é maravilhoso o suficiente para qualquer um”. E, para variar, despertou admiração rasgada de seus leitores fiéis e ira incontida dos religiosos.

O romance de McEwan (1948) A balada de Adam Henry, que será lançado pela Companhia das Letras este mês, é, em certa medida, uma retribuição ao amigo. Mas, como bons polemistas, uma retribuição não significa uma adesão às cegas.

Fiona Maye é juíza da High Court e está às voltas com sua crise no casamento: beirando os 60, seu marido Jack, um belo dia, lhe diz que ambos se transformaram em “irmãos” e que, apesar de ainda amá-la, quer um novo pacto, que lhe permita saciar seu apetite sexual com mulheres mais jovens. Sente-se morto, e necessita de um grande caso.

Fiona consegue, apesar de tudo, tocar sua vida profissional. Juíza de família, é obrigada a decidir casos como o da comunidade haredi (judeus ultraortodoxos), que vê toda a vida dentro da prática religiosa. Como um estado laico, como o britânico, lida com a questão? Um membro da comunidade pode impedir sua filha de frequentar a escola? E o bem-estar da criança? O que representa esse bem-estar? Resume-se a aspectos financeiros ou mesmo de conforto físico?

Ou ainda o caso dos irmãos xifópagos Mateus e Marcos (outra vez a religião!). O coração de Marcos sustentava os gêmeos; o cérebro de Mateus era malformado, incapaz de um desenvolvimento normal; seus pulmões, incapazes de funcionar corretamente. Não viveria mais de seis meses, e quando morresse, tragaria Marcos. O hospital foi à Justiça procurar uma autorização para separá-los, de modo a salvar Marcos e, deliberadamente, sacrificar Mateus. Mas isso seria aceitável? Separá-los mataria um dos irmãos; a inércia, ambos.

Fiona desenvolveu a tese de que Mateus, que morreria de uma forma ou de outra, não tinha interesses, ao contrário do irmão. E recorreu a uma teoria do direito inglês, a chamada doutrina da necessidade – por meio da qual seria possível infringir uma lei criminal para impedir um mal maior. A decisão, contudo, não sairia barato para Fiona, que recebeu cartas ameaçadoras; e o arcebispo de Westminster defendeu a morte de ambos, para não interferir nos “desígnios de Deus”.

Lei e sangue Mas vamos ao caso Adam Henry, filho de Kevin e Naomi: uma criança, para a lei. Adam tinha 17 anos. Possui uma inteligência notável e é, a rigor, um adulto com pleno discernimento de sua real situação. A opção pelo título na tradução brasileira esconde o original – The children act, algo como A Lei da Criança. A questão já foi vivida por juízes brasileiros: internado num hospital, sofrendo de leucemia, necessita urgentemente de transfusão de sangue para sobreviver. Mas ele, tal como seus pais, é testemunha de Jeová, que proíbe o procedimento.

Os jornais estão nervosos, prontos para a cobertura e aguardando a decisão de Fiona. Os sites já divulgaram fotos do jovem com seus pais. Somos apresentados aos advogados do hospital e da família, desenvolvendo suas teses. Fiona busca equilibrar interesses e ideias, razão e fé.

McEwan nos oferece um belo apanhado do sistema judiciário inglês, do sistema do common law, baseado em casos concretos e precedentes judiciais, e lida com grandes questões do direito deste início do século 21. Um trabalho a ser dissecado nas nossas faculdades de direito, que andam histericamente presas à dogmática jurídica e a tecnicismos que nos fazem esquecer o que Lord Justice Ward, citado no livro, nos adverte: o dever do juiz é aplicar os relevantes princípios do direito ao caso que lhe é posto – um caso que é único.

Fiona (ou McEwan?) não se furta às perguntas e comentários que poderiam ter sido feitos por Hitchens: a proibição da transfusão pelas testemunhas de Jeová, evidentemente, não estava no Gênese, mas data de 1945 – o que você acha da ideia de o destino da vida de seu filho ser decidido por um comitê no Brooklyn? – indaga Fiona aos pais de Adam.

O que deve prevalecer? A vontade do paciente (menor, mas às portas da maioridade) e sua família? O direito à religião? Ou, pelo contrário, o direito à vida teria um caráter absoluto? Essa discussão não nos é estranha. Recentemente, o STJ analisou um caso ocorrido no Rio de Janeiro, onde, há mais de 20 anos, uma adolescente de 13 anos morreu exatamente nestas circunstâncias; os pais impediram a transfusão, o que foi acatado pelos médicos. O STJ isentou os pais de culpa, mas responsabilizou os médicos, por infração ao Código de Ética Médica.

Não tenho interesse em comentar o caso; estamos comentando um romance, e não a postura do tribunal brasileiro. Adianto que Fiona julga o caso em favor do hospital. O que acontece a partir daí, é claro, deve ser descoberto pelo leitor. Fiona acaba manifestando sentimentos contraditórios em relação a Adam, que pouco tempo depois de salvo atinge a maioridade.

Mas o que posso adiantar é: McEwan não é um autor previsível. Em uma entrevista à New Republic, em 2008, ele se declarou um ateu que jamais se preocupou em esconder seu posicionamento, ao mesmo tempo em que afirmou não ser um “ateu ativista”. E mais: a religião jamais será erradicada, e a simples ideia de que isso possa acontecer é simplesmente terrível.

A balada de Adam Henry pode não ser o melhor livro de McEwan. Particularmente, acredito que O inocente, Reparação (por muitos, considerado o seu melhor) e Serena são superiores como obras literárias – os dois primeiros, inclusive, renderam belas adaptações cinematográficas. Mas é um grande romance, fruto de um escritor que domina a técnica de narração como poucos e, além disso, sempre tem algo a dizer.

A balada de Adam Henry • De Ian McEwan, tradução de Jorio Dauster
• Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 37,90


Fabio Guimarães Bensoussan é procurador da Fazenda Nacional, professor da Faculdade de Direito Milton Campos e tradutor.



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