A morte na cabeceira

Evandro Affonso Ferreira completa sua Trilogia do desespero com o romance Os piores dias da minha vida foram todos, sobre uma mulher que agoniza

por 06/12/2014 00:13
Arquivo pessoal
Arquivo pessoal (foto: Arquivo pessoal)
Carlos Herculano Lopes



Ex-dono de um sebo que ficou famoso em São Paulo por reunir escritores e intelectuais conhecidos, que por lá passavam à procura de novidades ou para um dedo de prosa, Evandro Affonso Ferreira estreou na literatura em 2000 com o volume de contos Grogotó. Conta-se que teria sido descoberto por um dos frequentadores do seu “comércio”, o renomado crítico, poeta e ensaísta José Paulo Paes. O homem se encantou com suas histórias, tecidas num estilo refinado, que o diferenciava de outros autores do gênero. Naquela época, a prosa de Evandro Affonso, como lembrou o também crítico e escritor Ronaldo Cagiano, era mais voltada para a palavra. Em seguida, vieram outros quatro livros de contos até a publicação da novela Catâmbrias, que saiu em 2006.

Talvez inconscientemente, Evandro Affonso Ferreira, que é mineiro de Araxá, mas está radicado há mais de 40 anos em São Paulo, estivesse preparando o terreno para seu primeiro romance, Minha mãe se matou sem dizer adeus, lançado em 2010, e com o qual deu início à Trilogia do desespero, como o próprio autor a nomeou. Deu certo, pois o livro, além de ter sido aclamado pela crítica, que não lhe poupou elogios, foi ainda o vencedor do Prêmio Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

Com o segundo volume da série, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, lançado em 2012, o escritor ganhou o Prêmio Jabuti do ano seguinte e ainda ficou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura. A história foi quase toda escrita entre um cafezinho e outro numa lanchonete que fica em um shopping de Higienópolis, na capital paulista.

O mesmo se deu com o último romance da trilogia, o recém-lançado Os piores dias da minha vida foram todos (Record), escrito entre a lanchonete e um café da Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, também em São Paulo . O local, de uns tempos para cá, foi eleito como novo quartel-general do romancista, que já começa a ficar “figurinha carimbada” no pedaço.

“Continuo escrevendo nas lanchonetes da cidade, já é costume antigo. Coisa de maluco. Duas, três horas por dia passo nesses locais. Já me acostumei a isso. Gastei centenas de bloquinhos. Torno-me conhecido nos lugares, como está acontecendo agora no Café Cultura, onde minha mesa costuma ficar cheia de gente. Gente culta, muitos intelectuais passam por ali para um cafezinho”, conta.

Se nos primeiros livros, que incluem ainda Araã, Erefuê, e Zaratempô (que no ano que vem serão relançados) Evandro Affonso Ferreira valorizava “a vida da palavra”, a ponto de ter montado durante 15 anos um dicionário próprio de palavras sonoras, na Trilogia do desespero ele se tornou mais reflexivo, preocupado com as inquietudes humanas: “Sim, vivo com ela, a morte, na cabeceira da cama, se assim posso dizer. Dez anos atrás operei do coração, sou safenado. Corda bamba daquelas. De modo que posso muito bem citar agora Flaubert, dizendo: Bovary sou eu ”.

Foram essas inevitáveis inquietudes, que de resto são comuns a todos, que levaram o romancista a escrever Os piores dias da minha vida foram todos. Uma espécie de catarse, como de certa forma ocorreu com os outros livros. Usando o monólogo como recurso e sem nomear os protagonistas, a história se concentra dentro em um pequeno apartamento num hospital de São Paulo, onde uma mulher está à espera da morte. Enquanto essa não vem, para aumentar ainda mais o seu tormento, ela vaga em lembranças pelas ruas da capital paulista, nas quais conversa com pessoas, inventa situações, enfim, vai espichando o que ainda lhe resta de vida na companhia de uma terrível solidão.

Deixando de lado o plano ficcional e pulando para a dura realidade da existência, Evandro Affonso Ferreira conta que, enquanto escrevia a história, também se recordava de uma irmã querida, a caçula da casa, que morreu de Aids. “Fiquei muito chocado com essa situação e de certa forma transportei toda essa angústia para o livro. Depois, quis também homenagear, evocando na memória dois amigos queridos, intelectuais de primeira: José Paulo Paes e Alcir Pécora, que me ajudaram muito desde o meu primeiro trabalho. Foi assim que nasceu, por assim dizer, Os piores dias de minha vida foram todos.”

Três perguntas para...

Evandro Affonso Ferreira
escritor

Por que chamar os três romances de Trilogia do desespero?

Foi o jeito que encontrei para decodificar o conjunto da obra, toda ela escrita num período crítico da minha vida. Comecei a escrever os livros andando pelas ruas de São Paulo, vendo pessoas, coisas, acontecimentos de todos os naipes. Os três livros, de certa forma, dialogam com essa metrópole apressurada. Cada um à sua maneira. No primeiro, o personagem dialoga, por assim dizer, telepaticamente, com os frequentadores de um shopping; no segundo, o personagem, ele mesmo um mendigo, dialoga com seus pares debaixo de um viaduto; e no último, o personagem, morrendo numa UTI, se imagina andando pelas ruas da cidade. Encerro essa trilogia satisfeito. Foi gratificante escrever esses três livros.

Os livros lhe deram prêmios importantes. O que significaram para você?

Prêmios! Ah!, os prêmios. Mas é sempre bom ganhá-los, ajuda, dá mais visibilidade ao trabalho. Mais tapinhas nas coisas, convites aqui, ali, acolá. Seria hipocrisia dizer que não ajudam.

Leituras de hoje ou as releituras de sempre?

Leio, releio meus deuses de sempre: Bruno Schulz, Hilda Hilst, Kawabata, Cornélio Penna, Herberto Helder, Hermann Broch, Robert Musil e outros. Quanto à literatura atual, acompanho muito pouco, muito pouco mesmo. Costumo dizer que sou antigo, pré-socrático.

Os piores dias de minha vida foram todos
. De Evandro Affonso Ferreira
. Editora Record, 128 páginas, R$ 30

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