Brilho ao entardecer

Em seus dois últimos livros, Ivan Junqueira deixou um legado de sensibilidade e pensamento. Volume de poesias tem como tema a morte e textos em prosa trazem reflexões maduras sobre a literatura brasileira

por 06/12/2014 00:13
Juan Esteves/Reprodução
Juan Esteves/Reprodução (foto: Juan Esteves/Reprodução)
André di Bernardi Batista Mendes


O escritor Ivan Junqueira (1934-2014) foi muitos. Foi jornalista, tradutor, ensaísta, crítico literário e ocupou, de 2000 a 2014, a cadeira número 37 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a João Cabral de Melo Neto. A Editora Rocco acaba de lançar dois livros do escritor – Essa música, de poemas, e Reflexos do sol-posto, de ensaios sobre literatura.

É preciso força. É preciso amor (e coragem) para encarar a morte. Ivan Junqueira entregou à editora seu derradeiro livro de poesia poucos meses antes de partir. Escritos nos últimos anos, entre 2009 e 2013, os versos tratam justamente sobre este tema recorrente em sua obra: a morte e suas implicações no pensamento. Ivan parece que percebeu este fogo num crescente e não se furtou e não fugiu e não fechou os olhos diante deste brilho paradoxal, imenso, inexorável.

Como nos disse o português Valter Hugo Mãe: “Há uma maturidade muito grande na morte, uma sabedoria qualquer que nos acode”. Mas isso não apazigua, não remenda o que não tem remédio. Ivan Junqueira sabia dessas coisas nada fortuitas. “Por que nos coube essa doença/ de sermos assim tão efêmeros/ entre duas datas extremas:/ a da morte e a do nascimento?” A morte pode ser pedra, breu, vertigem, descontentamento. A morte. Uma espécie de filme, essa melodia estranha, de encantamento, música que o poeta soube ouvir (inventar) para si mesmo, para depois traduzi-la, para depois reinventá-la em pura poesia. Ivan Junqueira é dono de uma poesia medida, arquitetada palavra por palavra. Sentimento gera sentimentos. Amor sobre amor, até o fim e para além dele.

“Haverá alguma saída/ para o tormento metafísico?” Mistério maior. Quando poeta e poesia tornam-se um corpo único, num crescente de acordes e encontros. A vida é cheia de transcendências. A poesia de Ivan Junqueira tornou-se rio. O poeta também. Ele encontra forças: “Dizer adeus é o mais difícil,/ o mais antigo e árduo suplício”. Ivan, em seu livro, com sua extensa verve, fala de várias mortes: da infância, da inocência, dos parentes, dos amigos, do amor, de esperança, das expectativas, das perspecitvas, da ideia de imortalidade que toma todos, de tudo que não é lembrado. “Ando a esmo, absorto e sombrio,/ a alma entre os dentes, a vida/ por um fio.” Ivan Junqueira é dono de uma espírito secreto, não traduzível nem sequer em versos.

Pela vida, Ivan Junqueira não virou a cara para os desmandos, para os tormentos, para as cicatrizes, para os crimes, para as trapaças, para as nódoas irremovíveis. Tudo tornou-se combustível para sua literatura, a memória, o amor (nosso maior dilema). Existem abismos, ele ensina, num rosto, numa paisagem. Ivan respirou o quanto pôde dentro, no cerne da pulsação dos seus poemas. É quando a poesia entranha-se, é quando o poeta sonha sonhos. Existiram e existirão manhãs nascendo dentro, diante e para isso tudo.

A poesia é a arte de desencontrar coisas submersas. Nas estrelinhas, nas entrelinhas moram os poemas. Essa coisa, essa “música sem clave ou instrumentos/ que se escuta entre o som e o silêncio”. O poeta encontrou, na vida, sua estrada. O poeta soube, a cada livro, a cada poema, a cada palavra, sustentar um sonho, um sonho de ampla vida amparada principalmente por palavras, que ampliam, que nadam e crescem sobre o nada necessário.

O poeta Ivan Junqueira escreveu até o fim, até tudo, aos poucos, virar neblina. “Não sou eu que escrevo o meu poema:/ ele é que se escreve e que se pensa,/ como um polvo a distender-se, lento,/ no fundo das águas, entre anêmonas/ que nos abismos do mar despencam.” Humilde, sábio, zen, Ivan Junqueira soube, como poucos, ser irmão, este poeta soube ser filho de sua poesia. “É tudo amor, e mais coisa nenhuma.”

Amante da boa literatura foram Castro Alves, Fagundes Varela, Blasco Ibáñes, Federico García Lorca, Stéphane Mallarmé, Paul Valéry, T. S. Eliot, Charles Baudelaire (sua tradução para as Flores do mal é inigualável), entre outros, que transformaram e fizeram crescer a poesia de Ivan Junqueira. O homem se vai, mas o poema fica. “Depois é só vê-lo a galope,/ já sem ter ninguém a bordo./ Ele a sós, indo-se embora/ para o infinito onde mora.”


ESSA MÚSICA

• De Ivan Junqueira
• Editora Rocco
• 96 páginas, R$ 19,50



Antigo


E então mais uma vez me fiz antigo.
O que se foi é a trilha por que sigo,
liberto nas algemas da medida,
dentro da qual me movo em comovida
procura de mim mesmo e de outra vida
que não seja tão só a de uma ida
sem volta àquela instância que persigo:
a de estar todo tempo a sós comigo.
E assim vou indo, príncipe e mendigo,
sem levar fêmea, fâmulo ou amigo
que os passos me acompanhem na subida
ou os pés se lhes travem na descida.
Não misturo-me ao joio. E eis vos digo:
os outros são o inferno. Eu sou o trigo.


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