Significação e sentido

Um dos mais importantes textos do teatro contemporâneo, Esperando Godot, de Samuel Beckett, ainda é capaz de trazer interrogações essenciais para os dilemas postos ao homem do nosso tempo

por 06/12/2014 00:13
Herwig Prammer/Reuters
Herwig Prammer/Reuters (foto: Herwig Prammer/Reuters)
Marco Antônio Souza



Havia silêncio e apenas uma árvore. Ao longe, um deserto ao lusco-fusco. O suporte do céu era cinza e preto ao entardecer. O personagem Stragon diz: “Por que a gente não se enforca?”. Vladimir responde: “Com quê?”. “Vamos embora.” “O ar está cheio de nossos gritos.” Stragon sentencia: “Todos nascemos loucos”. Sem má consciência, Vladimir diz: “O que é que estamos fazendo aqui, essa é a questão.” “Uma coisa é cristalina: estamos esperando Godot.” Eis aí: dois mendigos, despojados de todos e de tudo, sozinhos entre si, companheiros de desgraça e sorte, estão à espera... de Godot, ou de um deus pessoal (não cristão, não ortodoxo, não oriental, não muçulmano, não hindu...), que lança, em terra infirme, as redes de pescar homens, numa intenção silenciosa de salvá-los. Mas a salvação passa ao largo de Godot. Falamos, assim da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989) – referência literária fundamental do século 20, que entrou com significação e sentido nas esferas da arte culta e teatral do século 21.

Tão forte, Godot desperta a interrogação de cada dia. Aliás, para além ou aquém dessa lógica, existe a presença de uma noturnidade atordoante. Godot tem um discurso sóbrio: envia suas mensagens para Vladimir e Estragon, mensagens de atenção e interesse, mas está ausente e usa a indiferença como completude e fragmentação de si mesmo. Pois é de seu feitio fazer da existência um lance de dados no escuro; ou seja, joga-se, pois, o jogo da espera e da libertação em confiança a Godot, para se obter aconchego desse ser transubstancial.

Ora, longa e larga é a espera por Godot: a ausência dele leva os personagens, como num campo minado, a uma aflição violenta. Eis a sensação de se estar vivo numa crise solitária, uma vez que Godot é o bem e é o mal.

Percebe-se em Beckett que seus personagens vivem no limiar das coisas perdidas, num submundo incognoscível, numa extraterra de uma solidão mediocrizada – e, aqui, nem a humilhação e nem a bondade (como forma de expressar a medida de santificação) têm voz e vez e um cume espiritual. O ser presentifica uma aspereza natural e canhestra diante das coisas ao redor e experimentáveis de serem vividas. A bondade desconhece-se a si mesma. O homem beckettiano não tem qualquer febre moral. Desfruta o mal com inusitada estranheza e já vive no limiar de um tremor-temor existencial de abjeção contundente.

Godot é um ser subliminar, o absoluto que se inteira pelo “juramento” vazio no meio dos homens. Espera-se ele, mesmo sabendo que é um tergiversador excepcional daquele que não chega nunca. Ou melhor: é necessário acreditar que Godot está perto e pode ser o deus que faltava. O tormento beckettiano mostra um ciclo natural de agonia. Godot virá ou deverá vir, será um porto, uma luz, um farol? Há nisso a provocação de uma imagem especular de um deus que se anuncia para esconder-se; que lida com a esperança como se fosse num jogo de episódios banais. Eis a divisa: para Beckett, tudo é, apenas, transverberação da miséria humana.

Esperando Godot pode ser um evangelho da negação, escrito por um evangelista ateu. Trata-se de um caminho similar ao caminho feito pelo purgatório de Dante, ou de Kafka, ou de Antonioni, ou de Ingmar Bergman. O mundo godotiano é um mundo crispado e abeira a inutilidade do ser e de tudo ao redor. Nada parece ter valor. Ou tudo pode ser uma descida pela encosta do purgatório, que leva ao inferno à la Entre quatro paredes, peça de Jean-Paul Sartre. Vê-se a inutilidade de cada um (lembra-se Mário Peixoto, do filme Limite, 1930-1931). A peça de Beckett é um todo (ausente de relaxamento) que reproduz o mundo esvaziado e triste. O homem está deslocado, como ser in regress, sem garantia de sobrevivência. Experimenta-se a organicidade da desesperança e o desespero. A esperança (spes) e a desesperança (spem) dialogam e duelam em nome do ser da rua dos pobres.

Outro corpo


Godot visita os últimos sobreviventes humanos. Todos comeram da árvore invisível do mal. Aqui, deixa marcas o romance beckettiano Como é: um livro eminente da agonia, que é representação psíquica ou surreal ou transcendente, ou abstratamente orgânica de um (in)viável holocausto que atingiu a espécie humana. A substância do texto é um corpo em que as pernas e os braços trocaram suas posições, os olhos caíram para outra parte do corpo, o nariz passou a respirar a obtusidade das coisas e os sentidos entraram em pânico. Beckett desarticula o real e o reconstrói como fragilidade absoluta do não ser, não ver, não ouvir, não olhar – como se o caos estabelecesse uma nova ordem sem deus. Este livro é uma decantação do irreal (realíssimo e pungente) e das forças que ritualizam o não ser em movimento, em gestos últimos, perdidos e não reencontrados em seu próprio refúgio.

Godot é, como vimos, o deus beckettiano. O ser da atenção displicente que nunca chega a uma consideração pelos outros. Ele realmente pode ser mau. É, sim, o deus da tortura silenciosa da indiferença. Godot é o nadificador por força das artimanhas. Não parece onipotente e onipresente. Ou é deus em decadência (e má é a sua criação). Deus falhou – ensina-nos Beckett. Não o bom deus das religiões, mas o deus bom/mau das ficções em que a condição humana precária dita ordens de originalidades existenciais. Num certo sentido, pouco restaria do empenhamento cotidiano do amor se dependesse de Godot. Ele está isolado em sua solidão – é dúbio, inconstante, indeciso e seu rosto não aparece. Não pode aparecer. Não deve aparecer. Godot é ultra-antigo, já nem mais é um escrevinhador de fatos, coisas miúdas, nada. É o ser que humilha por meio da onipotência envergonhada, e pertence ao evangelho da incerteza e do mal e das trevas tremendas, quando se percebe o ponto de interseção dos limites da condição humana.

Esta obra é uma síntese da humanidade rendida. De modo geral, como age Godot? Articulador do destino, ele abarca para si e de forma sub-reptícia as inferioridades humanas, e tem a face-engodo de uma imagem do desdém. Promete, pois, salvar – condenando? Condena, sim, para, no futuro, salvar? É o deus da bondade má (supõe-se), mas que é o mau por excelência espontânea. O homem beckettiano está à espera do Grande-Deus – lúdico por definição e surpresa. Em Godot, tudo é inquietude imóvel e isso faz jus a um fantasma de um tempo morto; é isso, Godot tem por parâmetro que bem/mal é um poço escuro em que há um embate (sem vencedor) de sombras, já que as trevas resistem às luzes, como se pode ver na utilidade do inútil. Há, assim, uma espécie de utopia sem unidade; uma ilusão de identidade do amor; uma confissão imediata de olhares e corações miseráveis.

Exílio

Convém pensar em Beckett como se ele estivesse num naufrágio sem espectador ou, melhor ainda, com os mais incríveis espectadores, por meio do romance O inominável, por onde o autor introduz uma metafísica do exílio permanente, como se tudo pertencesse ao caos e ao silêncio negativo. Tudo em O inominável, que nos ajuda a pensar Esperando Godot, é um não saber e uma filosofia real e verdadeira, próxima das ilusões. Com efeito, “Malone passa, sem ir a parte alguma, sem vir de parte alguma”. Eis uma viagem (muda) do ser, sequestrada pelo ser do devir. Nesse patamar, eis que surgem as forças do falso, do equívoco, do mágico teor que indigna o ser, solapando-o de si próprio. Ou seja: o narrador mexe com espelhos difusos da recriação do ser caído e sem mais nada – que diz: “Aqui, tudo é claro. Não, nem tudo é claro. Inventam-se escuridões”, lê-se em O inominável.

Tudo lá é raciocínio em toda a sua rudeza. Ou distensão das razões perturbadoras. Algo na ordem do todo pensa o ser e o projeta no inteligível. O inominável é a própria obscuridade que “fabrica” coisas e objetos, sentimentos e razões inquietas, confrontando sem-número de gritos (sem vida própria), que falam das velhas histórias (precárias) do ser num esconderijo de si próprio. Aqui, “há sempre qualquer coisa que se esquece, um insignificante sim, um insignificante não, que poderia dar cabo de um regimento inteiro de dragões”, diz o narrador. Os dragões são o que chamamos de uma máquina de fazer sentidos e não sentidos, longe/perto e a favor de realidades alienantes do ser do devir.

Voltemos a Godot, o espectador da desgraça humana. Para amá-lo, só odiando-o, para que, um dia, na hora oportuna, ele se perceba articulador da beleza e do bem. Tudo isso tem influência – visualidade e sonoridade – na sensibilidade de Vladimir e Estragon, que servem à inteligência instintiva, ao sentimento da cruz (que é uma força que marca o espírito), ao silêncio inusual do ambiente que se descobre, à legibilidade da desesperança e do que é consciente no inconsciente. Isto é: esperar Godot é pura litania do algo é isso, algo é aquilo, que enuncia no transcendente a irresponsabilidade.

Não por acaso, Vladimir diz: “Então, vamos?”. Estragon responde: “Vamos”. E “eles não se movem”. Cai, então, o pano, e a peça se encerra. Depois disso, eis o modo oblíquo de ver, criticar, dramatizar o banal da fala... Mas não há, aqui, nada banal: a imobilidade de quem vai é uma metafísica básica do ser livre. Godot poderia quebrar essa autonomia de ir e vir – para que, quieto, anuncie uma ação vazia do ser, que pode ficar em lugar algum da vida ou simplesmente estar na mobilidade de quem deseja partir e não parte, sem diálogo dramático e sem nenhum rumor diante do quase indiscernível Godot.

Vladimir e Estragon estão na perspectiva do nada se fazendo. Eles imobilizam a ação que chega ao afã da inação, onde o ser faz a muda confissão dotada de um senso de ferida rasgada, assim como Godot faz da plenitude o estilo de deus paradoxalmente vazio. Em outra vertente, Vladimir e Estragon são personagens de dura retórica: prevalece, pois, neles, a consciência crucial da incerteza. Deles percebe-se o statu quo de um “para nada”. Desse modo, sem intimidação, sem aniquilamento, eis as conexões com o divino e o demasiadamente humano.

Beckett é um navegador do escuro – e nos trouxe muitas perguntas. Nós somos navegadores das noites estreladas – e trazemos muitas respostas. Ainda mais: eis o traço marcante de uma irônica psicologização do sentido: “Pouca coisa nos consola, porque pouca coisa nos aflige”, disse Blaise Pascal, em Pensamentos, para que ficássemos pasmados diante de nós mesmos; e, nesse momento, pasmados diante da perpetuidade de Godot, o demiúrgico de todos os males.

. Marco Antônio Souza é crítico literário.

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