A hora de governar

O debate em torno da nova equipe de governo precisa se balizar pelos compromissos de campanha. Égide do agronegócio e comando da Fazenda entregue ao mercado são capitulações inaceitáveis

por 29/11/2014 00:13
Ueslei Marcelino/Reuters
Ueslei Marcelino/Reuters (foto: Ueslei Marcelino/Reuters)


Quando Sócrates, o filósofo, foi condenado à morte pelos cidadãos de Atenas, iniciou-se uma nova fase na política ocidental. Até então, havia uma separação entre a verdade e a opinião. A verdade, que cabia aos filósofos e sábios, tratava do domínio do absoluto; as opiniões, que diziam respeito aos assuntos do dia a dia, eram território da política. Sócrates quis ser ao mesmo tempo sábio e político. Em outras palavras, levar a verdade para o campo onde domina a opinião. Quando foram contar os votos, ele foi condenado a ingerir cicuta.

Verdade e opinião não se misturam.

Nosso tempo, que se quer democrático, há muito separou a verdade absoluta do domínio dos negócios públicos. Não aceitamos nem religião nem ditadura quando se trata de política, pois são duas formas de anular o debate. Na vida política, a opinião é soberana, ainda que instável e sujeita às sucessivas reformas que brotam de sua origem humana, demasiado humana.

No entanto, de tempos em tempos parece que estamos sujeitos a surtos de verdade absoluta. Uma dessas certezas é a de que o mercado precisa aprovar a equipe econômica de um presidente eleito. O anúncio de nomes comprometidos com o mercado financeiro, como se se tratasse de um antídoto à instabilidade política, é um ataque regressivo de verdade absoluta. Sua pior consequência não são os nomes em si, mas a anulação das divergências.

A escolha de pessoas ligadas ao mercado, como Joaquim Levy, que já mostrou sua proficiência em cumprir o famoso tripé ortodoxo com tesouradas certeiras, não é uma inclinação ao comedimento em matéria de políticas distributivas, mas uma capitulação aos interesses do rentismo. Em economia e política, a escolha de um caminho significa necessariamente a elisão do outro. A esquerda está desafiada a diminuir a injustiça, não a eternizá-la sob qualquer argumento ideológico ou conjuntural. A falácia da chamada “solução técnica” é que ela apenas reafirma a “solução política” com sinal contrário.

Não é possível levar adiante as propostas de um governo de esquerda com política econômica de direita. Há um conflito sem saída entre a necessidade de investimento em projetos sociais e de distribuição de renda e o entesouramento voltado para o mercado em sua sanha concentradora e inviável, com pagamentos de juros que drenam os recursos da produção para a especulação, e da sociedade para o capital.

Soja e verdade

A mesma lógica pode ser percebida no caso da agricultura. Ao ventilar o nome de Kátia Abreu, o que se afirma é um absoluto desprestígio da produção familiar de alimentos para a mesa do brasileiro, sem uso de venenos e com distribuição de renda, em favor de um modelo radicalmente oposto.

A senadora neo-peemedebista (uma migração recente e oportunista) é símbolo do que há de mais estrito em matéria de agronegócio, insensibilidade social com as condições de vida no campo, monocultura exportadora, incentivo às commodities e uso intensivo de agrotóxicos. Sem falar do desrespeito às populações indígenas.

Vale a pena lembrar que, quando os instintos golpistas se acirraram contra Dilma Rousseff, nos albores do falacioso “terceiro turno”, a defesa mais forte da democracia e de seus procedimentos veio exatamente dos movimentos sociais, com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST, por meio de sua principal liderança, João Pedro Stédile. Aliás, por sua base de apoio, conhecimento técnico e cacife político, por que seu nome não circula entre os candidatos a ministro do MDA? Mais um ataque de socratismo: a soja e a grande propriedade são as verdades absolutas no âmbito da produção agrícola.

Outro aspecto que vem conflitando com o resultado das eleições é a tentativa de cerceamento da discussão em torno da participação social. O decreto apresentado pelo governo, antes da eleição, foi considerado um instrumento extemporâneo, como um recurso para garantir o poder independentemente do resultado do pleito. No entanto, mesmo com a derrota, as forças conservadoras não se animam a distribuir poder, como reza a Constituição Federal, ancoradas na única forma de política que parecem dominar: a cooptação.

A democracia é feita de uma continuidade entre distribuição de riqueza e distribuição de poder. Um lado não funciona sem o outro. O fechamento institucional dos canais de participação é uma forma de fazer cessar a distribuição de poder e recuperar o centralismo dos partidos fisiológicos. Mais uma vez, ao ceder à agenda restritiva da oposição, o resultado das urnas fica sem sintonia com a sociedade.

No entanto, em meio ao compreensível tatear do terreno pós-eleitoral, o governo vem mostrando pelo menos determinação na apuração dos casos de corrupção. Mesmo com todo esforço para desvendar esquemas, prender corruptos e corruptores, o que se revela é um cenário de tão sórdida dimensão que apela para grandes mudanças nas regras do sistema político, de modo a inviabilizar sua continuidade histórica. Merecemos nos livrar desse horror. Para isso, o plebiscito da reforma política se torna a bandeira mais responsável do calendário público. Vem do pródigo jogo eleitoral o incentivo para grande parte dos desvios e superfaturamentos. E não é de hoje.

A situação atinge tanto a Presidência como os governos estaduais. No caso do Governo de Minas Gerais, há alguns compromissos que deixam o governador eleito Fernando Pimentel com responsabilidades inadiáveis com seus eleitores e com a opinião pública nacional, como o pagamento do piso aos professores e a auditoria da dívida pública estadual. A governabilidade é importante e deve ser construída com inteligência política. Mas não se pode deixar de levar em conta o patamar a partir do qual é possível negociar a e compor. É só se lembrar de quem ganhou a eleição: o povo brasileiro.

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