A estória quer ser história

João Guimarães Rosa resgatou a história real de vários personagens imortalizados em Grande sertão: veredas

por 29/11/2014 00:13
Arquivo Saul Martins
Arquivo Saul Martins (foto: Arquivo Saul Martins )
Carlos Herculano Lopes

Um dos mais importantes escritores brasileiros do século 20, criador de uma literatura universal que há muito quebrou as barreiras do tempo, Guimarães Rosa elegeu o Norte de Minas como palco geográfico e humano para o seu livro mais famoso, Grande sertão: veredas, publicado em 1956. O fato de ter nascido em Cordisburgo, na “boca do sertão”, com certeza contribuiu para isso. Curioso foi que o romancista, ao narrar as peripécias do jagunço Riobaldo Tatarana, com suas lutas e dramas por aquelas bandas, usou também não só nomes próprios de cidades, rios e acidentes geográficos – muitos conhecidos por ele em suas andanças com os tropeiros –, como se baseou ainda em alguns personagens reais, de carne e osso, para contar suas histórias.


Muitos estudiosos, ao longo dos anos, vêm tentando identificá-los, como foi o caso do professor e folclorista Saul Martins, que era de Januária, no Norte de Minas. Num dos seus livros, Antônio Dó, de 1997, ele revelou alguns desses personagens, inclusive publicando fotografias antigas. Entre eles, pois identificar todos – dezenas foram criados pela fantasia do escritor – é tarefa praticamente impossível, um dos mais famosos, sem dúvida, foi Antônio Dó, biografado por Saul Martins.


Célebre bandoleiro das barrancas do São Francisco nas duas primeiras décadas do século 20, e assassinado por um comparsa com uma mão de pilão em 1929, como notificou na ocasião o Estado de Minas, seu nome completo era Antônio Antunes de França, nascido na cidade de Pilão Arcado, na Bahia.


A ele, no Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa se referiu como: “Severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja”. Também em Sagarana o escritor voltou a se lembrar de Antonio Dó, cujo quartel-general, segundo Saul Martins, ficava na Serra das Araras, num arraial chamado Santo Antônio, de onde saía para fazer suas escaramuças sertão afora, no qual ainda hoje é lembrado.
Outro valentão que ficou famoso foi Andalécio Gonçalves Pereira, o Indaleste, morto pela PM em 1920. “Era temido e respeitado em toda a região norte-mineira do Rio São Francisco”, escreveu Saul. A ele, no Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa se refere como Indalécio Gomes Pereira, e descreve o seguinte: “A ver, por vingar, porque antes o major Alcides Amaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele. Andalécio – o que, de nome real: Indalégio Gomes Pereira – homem de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava sempre com temores: de quando, no tiroteio de inteira noite, Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz: – Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!”.
Já o major Alcides Amaral, da PM de Minas, também citado por Guimarães Rosa, foi, de acordo com Saul Martins, delegado de captura, temido em todo o Norte de Minas. “Andava sempre protegido por um grande cão policial, que tinha uma das presas cobertas por coroa de ouro. O autor deste livro, ainda menino, viu-o algumas vezes em Januária”, escreveu.

Polícia Também quem ficou imortalizado por Guimarães Rosa em seu romance foi o capitão Melo Franco, na verdade Raymundo de Mello Franco, outro oficial da PM que, segundo Saul Martins, comandou uma expedição contra Antônio Dó em 1913. Sobre ele, o romancista falou com a voz de Riobaldo Tatarana: “Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente. Major Oliveira, tenente Ramiz e capitão Melo Franco – esses não davam espaço”.


Outra figura real retratada tanto por Saul Martins no seu livro como por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, foi o famoso coronel Rotílio Manduca, que teria inspirado o romancista para criar um dos seus personagens mais famosos, Zé Bebelo. No romance, Rosa descreve o coronel: “Aquele – sequinho, espigadinho – e do ar sempre assustado constantemente. Dele sozinho, o que se diz: umas 200 mortes! Conheceu, o senhor? No barranco do São Francisco – o coronel Rotílio Manduca”. No livro de Saul Martins vem publicada uma foto de 1928, feita depois de ter ajudado o governo a combater a Coluna Prestes.


Nascido em Remanso, no interior da Bahia, consta ainda que Rotílio Manduca, depois de fazer e acontecer no sertão mineiro, teria sido assassinado a facadas em 1930, dentro de um dos camarotes do vapor Wenceslau Braz, que era comandado pelo seu irmão, Pedro Manduca, e por um tal de Mesquinheza. Tempos antes, este teria sido castrado por ele.


Também tenaz perseguidor da Coluna Prestes, outro personagem real lembrado pelo romancista foi o célebre coronel Horácio de Matos, cujo território de mando era a cidade de Lençóis, na Bahia. Como aconteceu com Rotílio Manduca, ele também foi assassinado. Outro personagem baiano retratado por Guimarães Rosa foi o famigerado alferes Félix Rodrigues da Silva, o Felão. Segundo ficou registrado no livro Histórias do Terceiro Batalhão, de Anatólio Alves de Assis, ele foi promovido a alferes da PM mineira em julho de 1900.


Perseguidor incansável de Antônio Dó, a quem não deu tréguas, Felão teria arrasado a Vila de Vargem Bonita, distrito de Januária, causando muitas mortes, em junho de 1913. Algum tempo depois, vítima de doença causada por carrapatos, ele morreu em sua fazenda, que ficava na região de Corinto. Ainda hoje, pelos mais velhos, suas histórias são contadas por aquelas bandas.

Tresneto A famosa Maria da Cruz, que em 1736, no sertão do Norte mineiro foi uma das líderes da sedição contra a coroa portuguesa e pagou caro pela ousadia, conforme contaram as professoras Angela Viana Botelho e Carla Anastasia no livro D. Maria da Cruz e a sedição de 1736, também foi retratada em Grande sertão: veredas. Ela e Pedro Cardoso, que era seu sobrinho e igualmente fazendeiro rico. Ao comentar com Riobaldo sobre Titão Passos, um dos lugares-tenentes de Joca Ramiro, Diadorim falou: “ Ele é meu amigo... Ele é bisneto de Pedro Cardoso, tresneto de Maria da Cruz”. Em sua homenagem, no Norte de Minas, às margens do São Francisco, existe uma cidade que se chama Pedras de Maria da Cruz.
Manoel Tavares de Sá, o famoso Neco, chefe de jagunços que aterrorizou algumas cidades do Norte de Minas e do sertão da Bahia nos anos de 1870/80, e forçou as cidades de Carinhanha e Januária à frente de um bando armado, também foi lembrado por Guimarães Rosa. Selorico Mendes, o suposto pai de Riobaldo Tatarana, se gabava de tê-lo conhecido: “Sentei na mesa com o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefia dele paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam e rendiam respeito... Neco? Ah! Mandou mais que Renovato, ou o Lióbas, estripuliou mais do que João Brandão e os Filgueiras”.


O coronel João Duque, chefe político e de jagunços, que mandou na cidade baiana de Carinhanha, na divisa com Minas, também foi lembrando em Grande sertão: veredas pela fala de Riobaldo: “Carinhanha é que sempre foi de um homem de valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem”. Em 1924, ele esteve à frente de um grupo de homens armados, os voluntários de Carinhanha, para também combater a Coluna Prestes. Nome de escola e de ruas em sua cidade, João Duque morreu em 1940.

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