Resistência à brutalidade

Livro póstumo de poemas de Alécio Cunha reflete personalidade agregadora do jornalista e sua relação sempre inteligente e crítica com Belo Horizonte

por 29/11/2014 00:13
Marcelo Prates/Divulgação
Marcelo Prates/Divulgação (foto: Marcelo Prates/Divulgação )
Anelito de Oliveira

A morte prematura do jornalista Alécio Cunha em 2009 foi um dos episódios mais dolorosos da cena cultural mineira, e belo-horizontina em especial, na atualidade. Era um agregador, generoso, bem-humorado, uma referência de afetividade num tempo e lugar cada vez mais ásperos. Seu jornalismo cultural, praticado durante quase 15 anos, foi um dos gestos mais notáveis na imprensa escrita brasileira à época, com textos bem-articulados, informando e formando leitores críticos.


Alécio era fundamentalmente poeta e, como tal, interessava-se por todas as moradas de poesia, por música, por cinema, por teatro, por literatura, escrevendo sempre com entusiasmo e inteligência sobre aquilo que distinguia como relevante. Tinha um olhar especial para a produção poética do tempo mais presente, digamos, aquela que se efetivava no país e, sobretudo, na capital mineira. Tornou-se, pouco a pouco, o principal divulgador e apreciador imediato, no calor da hora, dessa produção.


Somente em 1999 apareceu sua primeira coletânea de poemas, sob o título Lírica caduca, num dos pequenos volumes de uma delicada coleção de livros artesanais produzida pelo selo Por Ora. Alécio Cunha confirmava ali, para aqueles que nele apenas intuíam um vínculo forte com a poesia, que também era poeta de verso, de escrita de poemas. Voltaria a publicar uma segunda coletânea, Mínima memória, muitos anos depois, em 2007, pela Scriptum, reafirmando seu lugar de poeta.


Pouco tempo antes de partir, Alécio planejou publicar uma terceira coletânea de versos, sob a tarja de Sintaxe urbana, que só agora veio à tona graças a um esforço exemplar da jornalista Márcia Queirós, que foi sua companheira por longos anos, e de amigos sinceros, como o poeta e artista plástico Mário Alex Rosa. São poemas curtos, lances rápidos, sobre lugares, pessoas, situações vividas, rememoradas ou percebidas na sua Belo Horizonte de adoção – nasceu em Boa Esperança, Sul de Minas.


Sintaxe urbana revela algo como o fundamento do modo de estar no mundo que tanto caracterizava Alécio Cunha, porque estava sempre sorrindo, sempre disponível para o diálogo: era um modo humano, espontâneo, sensível a todas as coisas que o circundavam e interessado na ordem (sintaxe) comum compartilhada por todos, que estrutura o cotidiano da cidade grande, uma ordem paradoxal, contraditória, que o poeta, altamente sociável tenta expor com leveza a partir de um viés acolhedor.


Sempre compreensiva, a relação entre eu e cidade, tal como se apresenta nos poemas, aponta para um dado importante na experiência lírica de Alécio: trata-se de uma poesia que não aspira à especialidade, a ser literatura, mas à comunidade, a ser coisa comum, signo vivo de uma humanidade que dá sentido à própria cidade. O poeta lida com a ideia de poesia como meio de provocar a emergência da cidade, explorando dados afetivos ignorados pela maioria das pessoas por razões grotescas, societárias.


Apensas um exemplo já é suficiente para ilustrar essa situação, este “Cantina do Lucas”: “Seu Olimpo,/ Cadê você?/ Vim aqui/ só pra te ver”, poema com que Sintaxe urbana se abre e, num átimo, reabre-nos aquela Cantina do Lucas, bem como, analogicamente, a Belo Horizonte de um outro tempo, de um passado que vai se distanciando. O célebre garçom Seu Olimpo, já falecido, era mais importante que o bar e suas coisas, era o maestro humilde de um concerto humano que deslumbrava toda uma coletividade jovem de que Alécio fazia parte.

Ordenador O que se passa nesse poema – o movimento do eu em direção ao outro, uma alegre busca do encontro – caracteriza toda a coletânea, exibindo uma percepção da poesia como algo não apenas vinculado à esfera do comum (Arendt), pública, mas algo que se talha nesse comum – na Rua da Bahia, no Mineirão, no Palácio das Artes etc, lugares explorados pelos poemas –, que do comum se destaca sensivelmente, de tal modo que se pode dizer que o poeta, para Alécio Cunha, é um ordenador (fazedor de sintaxe) do urbano.
Todavia, à medida que o belo volume – enriquecido por um projeto gráfico sóbrio e fotos expressivas em P&B de lugares mais conhecidos da capital mineira – não apresenta todo o urbano belo-horizontino, nem sequer insinua essa pretensão, pode-se pensar na seletividade que realmente marcava o poeta, no cuidado que caracterizava sua relação com as coisas. Ordenar o urbano, para ele, exibir a sintaxe (ordem) do caos, implicava selecionar dados que, ao final, configurassem um horizonte de sentido mais humano.


Sem dúvida, os poemas-minuto de Sintaxe urbana soam-nos profundamente valiosos quando os percebemos de um modo até óbvio em termos teóricos, ou seja, pelo viés de uma resistência ao cotidiano bruto de uma metrópole, como tentativas muito simples, com gosto de modernismo de 22, de proteger a nossa humanidade sempre ameaçada, de não deixar que tudo se converta em barbárie, de garantir espaço para a cordialidade, para a amizade, para a fantasia, enfim, para os afetos fundamentais.


Anelito de Oliveira é doutor em literatura brasileira, autor de A aurora das dobras (ensaio) e Transtorno (poesia).

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