O mundo é uma bola

Livro de ensaios de Marcelino Rodrigues da Silva mostra a importância do futebol na formação social brasileira e sua presença no imaginário nacional. Autor destaca os clubes de Minas Gerais

por 29/11/2014 00:13
Arquivo EM
Arquivo EM (foto: Arquivo EM)
João Paulo





Na conceituada Faculdade de Letras das UFMG tem um grupo que se chama Fulia, sigla que significa Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes. Prova que a antiga queixa de que o esporte não tem a atenção que merece da academia já não se justifica mais. Futebol é coisa séria, sem deixar de ser, acima de tudo, uma paixão. E é sobre o futebol que o professor da mesma faculdade, Marcelino Rodrigues da Silva, está lançando hoje, em Belo Horizonte, o livro Quem desloca tem preferência – Ensaios sobre futebol, jornalismo e literatura (Edições Relicário).

O autor já bateu bola nessa área. Além de vários ensaios e artigos publicados em revistas brasileiras, sua dissertação de mestrado Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho, foi lançada em livro pela Editora UFMG. Naquele primeiro trabalho já estavam algumas balizas que retornam agora no novo título: a relação entre esporte e literatura, o estudo das crônicas de Mário Filho, a incorporação do futebol entre os elementos que ajudam a definir o modernismo e a modernidade no país.

Quem descola tem preferência é fruto de militância e paixão. Do primeiro campo traz a busca de articulações entre a academia e o futebol, com o uso de estudos nas áreas da literatura, da comunicação, dos estudos culturais, da semiologia e da sociologia. Marcelino faz dialogar autores como Stuart Hall, Jésus Martín-Barbero, Umberto Eco, Mário de Andrade, Davi Arrigucci Jr., Angel Rama, Homi K. Bhabha e Michel Foucault com jogadores e cronistas esportivos, sempre em busca de novas fronteiras.

No que diz respeito à paixão, além de deixar nas entrelinhas o amor a seu time e a marca familiar no esporte, Marcelino dedica boa parte de sua atenção aos clubes de Belo Horizonte e suas histórias.

O livro reúne 16 ensaios e é dividido em quatro partes. Na primeira, “Um jogo é um jogo é um jogo”, o autor trata da ligação entre futebol, literatura, arte e sociedade, buscando ainda salientar a contribuição do esporte para a formação da nossa identidade e do mais importante movimento estético do século 20 no Brasil, o modernismo. Surge já no primeiro texto, “Cidade esportiva, cidade das letras”, a principal referência de Marcelino Rodrigues, o cronista Mário Filho, que atravessa todo o livro. Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, é mais que um jornalista de talento. Com seu livro O negro no futebol brasileiro e sua atuação no campo da política do esporte e das comunicações, foi pioneiro na consideração do futebol como um elemento da cultura brasileira.

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A segunda parte, “Jogando em casa”, convoca a cena local do esporte. O autor reúne textos sobre o futebol em Minas acerca do trabalho do chargista Mangabeira (o artista Fernando Pieruccetti), criador dos mascotes dos times de Minas – entre eles os célebres Galo, Raposa e Coelho – e destaca as raízes e o sentido da rivalidade entre as torcidas.

O ensaio “Picadinho de Raposa com sopa de Galo”, o mais importante do livro, retoma a história da criação dos clubes da capital para propor uma interpretação inteligente e bem fundamentada sobre a eterna disputa entre Atlético e Cruzeiro. Marcelino mostra que os dois times de BH não se opõem classicamente, como representantes de estratos antagônicos (povo e elite), mas representam dois modos particulares do universo popular no Brasil. Em outras palavras, tanto o Galo quanto a Raposa, por meios e símbolos próprios, são evidências do caráter popular do esporte em Belo Horizonte. Povo contra povo.

Para qualificar ainda mais sua análise, Marcelino incorpora aos dois modelos mais associados aos times – de um lado a raça, de outro a astúcia – valores que fazem parte do imaginário que comandou o processo de modernização do país. Mais que uma relação de oposição, trata-se de destacar a complementaridade e espelhamento entre os dois times. “Enquanto o Atlético inveja a racionalidade e a astúcia cruzeirense, o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana”, analisa Marcelino Rodrigues.

A terceira seção do livro, “Mesa redonda”, mostra o papel da imprensa – e da literatura – na constituição do imaginário em torno do futebol, com observações sobre a transmissão esportiva, a crônica, a televisão e o rádio. A quarta e última parte, “Outros campos”, busca mais uma vez ampliar as fronteiras do futebol, estudando os discursos teóricos em torno do tema e a contribuição do cinema nesse diálogo.

Para fechar seu trajeto pelo esporte, Marcelino Rodrigues analisa o efeito da Copa do Mundo para o país, afirmando que é chegada a hora de deixar para trás os mitos que não servem mais. Para isso, nada melhor que conhecer o passado. É essa contribuição essencial que fica para o leitor de Quem desloca tem preferência.

Quem desloca tem preferência – Ensaios sObre futebol, jornalismo e literatura
. De Marcelino Rodrigues da Silva
. Edições Relicário, 290 páginas, R$ 40
. Lançamento hoje, às 11h, na Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi

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