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O mundo é uma bola

Livro de ensaios de Marcelino Rodrigues da Silva mostra a importância do futebol na formação social brasileira e sua presença no imaginário nacional. Autor destaca os clubes de Minas Gerais

João Paulo



Na conceituada Faculdade de Letras das UFMG tem um grupo que se chama Fulia, sigla que significa Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes. Prova que a antiga queixa de que o esporte não tem a atenção que merece da academia já não se justifica mais. Futebol é coisa séria, sem deixar de ser, acima de tudo, uma paixão. E é sobre o futebol que o professor da mesma faculdade, Marcelino Rodrigues da Silva, está lançando hoje, em Belo Horizonte, o livro Quem desloca tem preferência – Ensaios sobre futebol, jornalismo e literatura (Edições Relicário).

O autor já bateu bola nessa área. Além de vários ensaios e artigos publicados em revistas brasileiras, sua dissertação de mestrado Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho, foi lançada em livro pela Editora UFMG. Naquele primeiro trabalho já estavam algumas balizas que retornam agora no novo título: a relação entre esporte e literatura, o estudo das crônicas de Mário Filho, a incorporação do futebol entre os elementos que ajudam a definir o modernismo e a modernidade no país.

Quem descola tem preferência é fruto de militância e paixão. Do primeiro campo traz a busca de articulações entre a academia e o futebol, com o uso de estudos nas áreas da literatura, da comunicação, dos estudos culturais, da semiologia e da sociologia. Marcelino faz dialogar autores como Stuart Hall, Jésus Martín-Barbero, Umberto Eco, Mário de Andrade, Davi Arrigucci Jr., Angel Rama, Homi K. Bhabha e Michel Foucault com jogadores e cronistas esportivos, sempre em busca de novas fronteiras.

No que diz respeito à paixão, além de deixar nas entrelinhas o amor a seu time e a marca familiar no esporte, Marcelino dedica boa parte de sua atenção aos clubes de Belo Horizonte e suas histórias.

O livro reúne 16 ensaios e é dividido em quatro partes. Na primeira, “Um jogo é um jogo é um jogo”, o autor trata da ligação entre futebol, literatura, arte e sociedade, buscando ainda salientar a contribuição do esporte para a formação da nossa identidade e do mais importante movimento estético do século 20 no Brasil, o modernismo. Surge já no primeiro texto, “Cidade esportiva, cidade das letras”, a principal referência de Marcelino Rodrigues, o cronista Mário Filho, que atravessa todo o livro. Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, é mais que um jornalista de talento. Com seu livro O negro no futebol brasileiro e sua atuação no campo da política do esporte e das comunicações, foi pioneiro na consideração do futebol como um elemento da cultura brasileira.

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A segunda parte, “Jogando em casa”, convoca a cena local do esporte. O autor reúne textos sobre o futebol em Minas acerca do trabalho do chargista Mangabeira (o artista Fernando Pieruccetti), criador dos mascotes dos times de Minas – entre eles os célebres Galo, Raposa e Coelho – e destaca as raízes e o sentido da rivalidade entre as torcidas.

O ensaio “Picadinho de Raposa com sopa de Galo”, o mais importante do livro, retoma a história da criação dos clubes da capital para propor uma interpretação inteligente e bem fundamentada sobre a eterna disputa entre Atlético e Cruzeiro. Marcelino mostra que os dois times de BH não se opõem classicamente, como representantes de estratos antagônicos (povo e elite), mas representam dois modos particulares do universo popular no Brasil. Em outras palavras, tanto o Galo quanto a Raposa, por meios e símbolos próprios, são evidências do caráter popular do esporte em Belo Horizonte. Povo contra povo.

Para qualificar ainda mais sua análise, Marcelino incorpora aos dois modelos mais associados aos times – de um lado a raça, de outro a astúcia – valores que fazem parte do imaginário que comandou o processo de modernização do país. Mais que uma relação de oposição, trata-se de destacar a complementaridade e espelhamento entre os dois times. “Enquanto o Atlético inveja a racionalidade e a astúcia cruzeirense, o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana”, analisa Marcelino Rodrigues.

A terceira seção do livro, “Mesa redonda”, mostra o papel da imprensa – e da literatura – na constituição do imaginário em torno do futebol, com observações sobre a transmissão esportiva, a crônica, a televisão e o rádio. A quarta e última parte, “Outros campos”, busca mais uma vez ampliar as fronteiras do futebol, estudando os discursos teóricos em torno do tema e a contribuição do cinema nesse diálogo.

Para fechar seu trajeto pelo esporte, Marcelino Rodrigues analisa o efeito da Copa do Mundo para o país, afirmando que é chegada a hora de deixar para trás os mitos que não servem mais. Para isso, nada melhor que conhecer o passado. É essa contribuição essencial que fica para o leitor de Quem desloca tem preferência.

Quem desloca tem preferência – Ensaios sObre futebol, jornalismo e literatura
. De Marcelino Rodrigues da Silva
. Edições Relicário, 290 páginas, R$ 40
. Lançamento hoje, às 11h, na Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi