Travessia existencial

O repórter Julio Cruz lança hoje em Belo Horizonte o livro O caranguejo do Saara, que narra peripécias e perrengues vividos na África durante a cobertura do Rally Paris-Dakar

por 22/11/2014 00:13
Julio Cruz/Divulgação
Julio Cruz/Divulgação (foto: Julio Cruz/Divulgação)
Ângela Faria



Vinte álbuns de fotos, dezenas de velhos negativos e memórias de uma viagem quase transcendental. Poderia terminar assim a missão do jornalista Julio Cruz Neto de cobrir por duas vezes o Rally Paris-Dakar, no finalzinho do século passado, para o saudoso Jornal da Tarde. Felizmente, aquela aventura não ficou só na fotografia da parede. Viabilizado por um mutirão de amigos e pelo crowdfunding – a providencial “vaquinha eletrônica” –, o livro O caranguejo do Saara, que será lançado hoje em BH, nos conduz por um cativante passeio “off clichê” pela África.

Julio cruzou o deserto em 1999 e 2000, bem antes do cancelamento da edição do rali em 2008, devido à ameaça de ataque terrorista. A partir de 2009, a competição passou a ser realizada na América do Sul. O autor cruzou Marrocos, Mauritânia, Senegal, Burkina Fasso, Mali, Níger, Líbia e Egito. O fato de contar com toda a infraestrutura possível – aviões, GPS, refeições e internet – não fez dele aquele viajante “de passagem” por terras inóspitas e exóticas. Não temos aqui um daqueles guias de aventuras, mas um livro de experiências e sensações.

Julio, no fundo, pertence à tribo dos apanhadores de desperdícios fundada pelo saudoso poeta Manoel de Barros. Chuvas de areia, dunas inacreditáveis, meigas meninas comendo goiaba, o dulcíssimo chá dos tuaregues e o azul vestido por eles podem parecer meros detalhes naquele evento badalado, que de vez em quando atraía a atenção do mundo para a perigosa aventura no “continente negro”. O autor avisa: não se pautou pela obrigação profissional de explicar causas e consequências das mazelas com que deparou. “Não gosto das palavras fatigadas de informar”, dizia o bardo pantaneiro. Ninguém atravessa o Saara impunemente, parece nos dizer Julio Cruz Neto.

Em O caranguejo..., não há África romantizada. Estão lá a miséria, o desalento, o desrespeito aos direitos humanos e a barbárie política, fruto do criminoso processo de colonização do chamado “Primeiro Mundo” – como todos sabemos ou deveríamos saber. Mas isso não resume aquela gente.

Julio cumpriu rotas de helicóptero e até de carro, em vez de se acomodar no chamado “avião da imprensa”. Ao trocar a zona de conforto por perrengues que lhe renderam até bronca na redação, conheceu um pouquinho do mundo de homens de turbante, meninas exibindo todas as cores possíveis em suas bijuterias e penteados para lá de fashion, o nômade só com a sandália, o cajado, o chapelão de palha e a longa roupa – “tenda” protetora nas noites dormidas em meio a pedras, areia e raízes.

O leitor se diverte com perrengues africanos do jovem repórter. Um deles, aliás, deu origem ao título do livro: afobado depois de longa e atribulada viagem num carro de apoio, Julio embarca num avião para se dirigir à cidade onde retomaria seu lugar no comboio da imprensa. Tudo ia bem, até ele descobrir que pegou o voo de volta para a cidade de onde havia saído. De outra feita, o inexperiente arma a barraca em locais errados, toma banhos de areia, vê-se em banheiros improvisados com água suja pelas canelas (“quanto mais sobe, mais você percebe que as Havaianas no pé são inúteis”), vê-se praticamente extorquido por motoristas de táxi em seus solitários rolês por cidades perdidas no coração da África.

Universo paralelo

Há estresse também. Nosso cronista se irrita com a cusparada que levou, impacienta-se com a tradição transaariana de pedir um cadeau ao turista – se a lembrancinha for uma Bic, está de bom tamanho –, vê-se espiado e cutucado através das frestas da cabine de bambu enquanto toma banho. Mas reconhece: “o rali é o universo paralelo mambembe que passa pelos lugares sem interagir muito, aproveitando as trilhas e os cenários, a receptividade de governantes e empresários, deixando para trás restos mortais de fauna, flora e, eventualmente, espécimes humanos." Irônico, constata: se a comitiva primeiro-mundista evita compartilhar, o público local vai até o picadeiro.

Nada disso é traumático para esse brasileiro, que se depara com gente doida por gols e por novelas tupiniquins. De posse de um passaporte “diplomático”, ele constata: a coisa não se resume ao clichê do grito de guerra “Ronaldô!” ou “Romariô!”. Vestindo orgulhosamente o seu uniforme puído, um boleirinho se exibe para Julio. Na camiseta que um dia já foi azul, pode-se ler, escrito com pincel atômico: Denilson 19. O menino aponta para o pé. Canhoto, é ponta-esquerda da Seleção Brasileira.

O CARANGUEJO DO SAARA
De Julio Cruz Neto
Edição do Autor, 95 páginas, R$ 35
Lançamento hoje (dia 22/9), das 11h às 13h30. Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi. Informações: juliodamor@gmail.com


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