Dialética e amizade

O pensador marxista Leandro Konder, que morreu na semana passada, deixou um legado de reflexões sobre filosofia e cultura, além de incentivar a permanente autocrítica da esquerda

por 22/11/2014 00:13
Fabrizia Granatieri/FI
Fabrizia Granatieri/FI (foto: Fabrizia Granatieri/FI)
João Paulo



Nos anos 1980, ao voltar do exílio europeu, Leandro Konder se dá conta de que, já maduro, a melhor aplicação que tinha a dar a seu grande saber filosófico (embora marcado pela saudável humildade) e militância política era entrar de vez para a universidade. Sua vida, até então, tinha sido um esforço para aprofundar a compreensão das coisas e intervir na realidade, respeitando o conhecimento e a ética. Uma mescla que sempre equilibrou entre a academia e o jornalismo.

No entanto, ao preparar seu curriculum vitae, que incorporava essas duas dimensões, percebeu que havia um curriculum mortis que não podia ficar em segundo plano. Ao pensador, nunca escapou a necessidade da autocrítica. E é nos momentos de balanço que emergem, ao lado do triunfalismo burocrático das “vitórias”, o indispensável juízo das derrotas e dos limites de uma vida marcada por lutas. Não se ganham todas. Ainda mais no caso de comunistas no Brasil.

Leandro Konder morreu na semana passada deixando várias lições. Além da competência como pensador, demonstrada em 30 livros de filosofia, história, crítica cultural, biografias e romances, deixou o exemplo da autocrítica tão severa como marcada por uma dimensão que costuma escapar aos filósofos: o bom humor. Fugindo da tradição stalinista de certo masoquismo autoritário, defendeu uma reflexão que fosse contribuição ao avanço do conhecimento e da ação política. “A ideia de curriculum mortis é uma autocrítica lúcida, corajosa e benfeita, e não uma auto-humilhação patética, ou mera ‘entrega’ de informações ao adversário”, escreveu em seu livro Memórias de intelectual comunista.

Publicado em 2008, no livro, Leandro Konder fez um balanço de sua vida, militância e pensamento. Com estilo franco e boas doses de humor, Konder passava em revista o curso de sua vida, deixando com a leitura, além da coragem em assumir posições políticas sempre à contramão (ser comunista foi pecado punido com perseguição na época da ditadura; hoje é tido com boas doses de consenso pela hegemonia neoliberal por, no mínimo, anacronismo), a constatação da coragem também no campo das ideias.

Sua obra é diversificada, tratando de temas teoricamente difíceis (alienação e dialética), polêmicos (história da esquerda no Brasil) e inusitados para um comunista (o amor e a obra do humorista Barão de Itararé). Além disso, Leandro Konder escreve com clareza, teve sempre propósito em dialogar com o leitor, com estilo elegante e amável (mesmo nas polêmicas). Não é por acaso que José Guilherme Merquior, que foi seu amigo de toda a vida, mesmo localizado no extremo oposto do espectro ideológico, dedicou a ele seu livro Marxismo ocidental, uma análise crítica da tradição que Konder vem honrando com sua honestidade intelectual.

Três dimensões

Um intelectual que tem uma contribuição importante, e que não fica apenas repetindo suas referências, é algo raro. Um pensador que tenha três grandes linhas de interesse, em todas elas com originalidade, é quase um milagre. Foi o caso de Konder. Sua obra atinge pelos menos três áreas do conhecimento. Em primeiro lugar, a reflexão filosófica no seio do pensamento marxista, sobretudo no tratamento de dois dos mais complexos conceitos da tradição filosófica de esquerda: a dialética e a ideologia. Como sempre, ao tratar os conceitos, Konder não se deteve de ir tanto à história como à política. Mais uma vez ciente da necessidade da autocrítica, aponta os limites do pensamento marxista para questões próprias do século 21.

A segunda dimensão de sua vasta obra publicada em livro (sem contar as centenas de artigos publicados na imprensa) é o resgate de importante segmento da esquerda brasileira, que marcou e ainda está presente na história do marxismo no Brasil. Em livros como A derrota da dialética (1988), A democracia e os comunistas no Brasil (1980), O marxismo na batalha das ideias (1984) e As ideias socialistas no Brasil (1996), traz reflexões lúcidas e provocativas. Comunista desde os 15 anos (Leandro era filho de Valério Konder, também comunista histórico), o pensador foi se movimentando ao longo da história brasileira do século 20, em direção a novas concepções de esquerda, tendo pertencido ao PT e ao Psol. “As atuais condições de luta política exigem revisão das armas filosóficas”, registrou em sua autobiografia. Como se vê, pensamento e ação sempre andaram juntos.

A terceira e mais interessante contribuição de Leandro Konder ao pensamento brasileiro foi a abertura de sua reflexão para a dimensão humanizadora da cultura socialista. Quem acompanha o debate intelectual no campo da esquerda vai se deparar quase sempre com análises econômicas e políticas, muitas vezes sofisticadas demais (quase iniciáticas) e tantas outras chatas o bastante para afastar a leitura. Konder sempre foi um homem de pontes culturais. Ele vai trazer para a vida intelectual da esquerda temas culturais e, ao mesmo tempo, introduzir novos autores. É notável seu esforço em escrever livros introdutórios – para apresentar, entre outros, Benjamin e Lukács, suas duas maiores referências neste campo –, o que denota seu compromisso pedagógico.

Nesse setor, vale destacar algumas obras bastante interessantes de Konder, como as biografias Flora Tristan – Uma vida de mulher, uma paixão socialista (1994); Fourier, o socialismo do prazer (1998); e Barão de Itararé – O humorista da democracia (1992). São, como se vê, personagens bem diferentes e menos cotados da história intelectual. O livro sobre Flora permitiu ao autor mostrar a união dos projetos socialistas e feministas a partir de uma vida concreta e de um pensamento que não se expressava de forma propriamente filosófica. A biografia de Fourier, um pensador reconhecidamente bizarro, não impede que Konder destaque sua grandeza profética. Por fim, a pequena obra sobre o Barão de Itararé é uma revelação do poder crítico do humor na imprensa. “Tive a impressão que ele me dava uma pista para entender alguns pontos nos quais a esquerda podia ser diferente do que vinha sendo, podia ser melhor do que era.” Para Konder, humor era assunto sério.

Na mesma linhagem cultural, Konder publicou ainda um importante ensaio, A poesia de Brecht na história (1996), e um balanço maduro de sua concepção estética em As artes da palavra – Elementos para uma poética marxista (2005), uma espécie de prestação de contas a Benjamin e Lukács. Num esforço de síntese, Konder defende que é possível, na leitura de romances, adotar tanto a postura lukacsiana que sublinha a continuidade dos processos históricos, quanto a linha benjaminiana, que desconfia radicalmente da continuidade e convoca a questionar a veracidade da face que a história nos apresenta. Como exemplo de sua perspectiva pessoal, Konder encerra o livro com um luminoso ensaio sobre o realismo na poesia de Fernando Pessoa. Para completar sua declaração de amor à literatura, o próprio Konder publicou dois romances, o picaresco Bartolomeu (1995) e o policial A morte de Rimbaud (2000).

Odisseia

Em um de seus últimos livros, Em torno de Marx (2000), ele retoma um pouco de todas essas vertentes. O ensaio começa reconhecendo as transformações do nosso tempo, como a mudança das condições de trabalho com a informatização dos processos de produção e gestão, por um lado; e o papel cada vez mais violento dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, com suas estratégias de manipulação por meio do entretenimento e do consumismo. Para enfrentar o novo cenário, que já se apresenta como crítico, Konder propõe uma volta a Marx. Mas reconhece que a tradição dos estudos nessa área é suficientemente conhecida, sobretudo nos campos da história, crítica da economia política e análise da luta de classes. O Marx que faz falta, no entanto, de acordo com Leandro Konder, é o filósofo.

O livro se divide em três partes. A primeira, que dá nome ao livro, enfrenta a revisão por que passa o pensamento marxista – criado no século 19, com sua mais notável marca no século 20 e tomado por derrotas no começo do século 21 –, sem amenizar as críticas nem se perder em perspectivas ideológicas e salvadoras. Konder estuda temas como a moral, a religião, a história e a dialética, chegando ao grande tema filosófico da morte. Humanista, Konder, ao tratar de temas da tradição filosófica, escreve passagens literárias como essa, em que compara o destino de Marx ao de Ulisses, herói da Odisseia: “Marx, ao longo de sua caminhada, identificou-se bastante com Odisseu. Talvez possamos sublinhar e até desenvolver essa identificação observando que Ulisses precisou lutar em Troia durante 10 anos e, na volta para casa, em sua navegação até Ítaca, levou outros 10 anos, porque caiu em desgraça em face de um deus, Posêidon, que é ninguém menos que o deus do mar. Desse modo, Ulisses podia ensinar a Marx como sobreviver a muitos naufrágios e continuar a participar da guerra pela liberdade e pela justiça”.

A segunda parte do livro, “A herança de Marx”, estuda autores ligados ao marxismo no século 20, como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Gyorgy Lukács e Antonio Gramsci, nomes que influenciaram Konder, alguns deles revelados ao leitor brasileiro em razão de seu trabalho, seja como intérprete, organizador de volumes de ensaios ou tradutor.

A terceira parte, “O marxismo no Brasil”, reúne dois pequenos ensaios. No primeiro, “Marxistas brasileiros: primeiros militantes”, analisa o fundo cultural do século 19 e a repercussão das ideias socialistas nos intelectuais brasileiros, do cético Machado de Assis à perspectiva social-democrata de Euclides da Cunha, além de comparar nosso cenário com o de países vizinhos, como Argentina e Uruguai. Konder faz a gênese da esquerda no Brasil, revelando nomes pouco conhecidos. Uma pequena joia ensaística que mostra como é possível valorizar as condições objetivas sem deixar de lado as disposições subjetivas. O segundo texto, “A fala da direita no Brasil de 1936 a 1944” examina um capítulo da repressão às ideias socialistas durante o Estado Novo, com um ideário fascista que não parece ter mudado tanto.

Não deixa de ser significativo que, num livro sobre a esquerda, o aviso final seja a permanência da cara da nossa extrema direita. “Dificuldades do campo de batalha”, diria Konder. Uma profecia, como se vê, bastante atual.

Em sua autobiografia, Leandro Konder recorda momentos marcantes do século 20, fala de política, mostra os bastidores da realização de sua obra, revela como conviveu com sua doença (mal de Parkinson) e fala do dia a dia de um intelectual comprometido com seu tempo. Chama a atenção como, entre um capítulo e outro, Leandro sempre faz questão de destacar a importância dos amigos. Para esse comunista confesso, há coisas que, nem a dialética explica. Talvez a melhor definição de socialismo seja aquela que afirma que em um mundo de iguais, todos podem ser amigos.

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