Amor e civilização

Cenário de violência que desafia a sociedade contemporânea, no âmbito individual e coletivo, encontra na psicanálise uma referência capaz de avançar até as raízes profundas do fenômeno

por 22/11/2014 00:13
Roosevelt Cassio/Reuters
Roosevelt Cassio/Reuters (foto: Roosevelt Cassio/Reuters)
Henri Kaufmanner



Em 1932, Albert Einstein escreveu a Sigmund Freud para que este lhe ajudasse a entender quais as razões para a beligerância entre as nações e, quem sabe, a partir desse entendimento, apontar soluções. Em resposta ao físico, Freud esclarecia que a violência é um fato da própria condição humana. Ele dizia que a violência somente era suplantada pela união dos indivíduos e a lei, como consequência, seria a representação do poder desses que se uniam.

A lei sustentaria então a força da comunidade resultante dessa união, de tal forma que ela própria carregaria em si a violência, pronta a se dirigir contra qualquer indivíduo que se voltasse contra essa força.  A própria lei seria, assim, violenta.

As leis, seguindo Freud, teriam sido criadas para evitar um recrudescimento da violência por parte dos indivíduos, sobrepondo-se ao poder dos que se uniam. Já as instituições seriam as responsáveis por zelar pelos interesses comuns que as leis representavam. A manutenção dos interesses comuns levaria a vínculos emocionais entre os membros da comunidade, sendo esta, segundo Freud, a verdadeira fonte de sua força. Os interesses comuns podemos chamar de ideais e estes ideais coletivos consistiriam a matriz simbólica dos laços entre os indivíduos.

Este é, reduzido a poucas palavras, o modelo freudiano para a civilização. A violência do homem, contida pelas leis também em si mesmas violentas, mas sustentadas pelos ideais civilizatórios. A correspondência entre Freud e Einstein ficou conhecida com o título de “Por que a guerra”, e a eclosão da Segunda Guerra Mundial permite bem perceber o insucesso de Einstein em seus esforços.

Nesses últimos dias, comemoraram-se os 25 anos da queda do Muro de Berlim e o mundo dos sonhos que parecia se anunciar com o aparente fim da divisão representada por aquele muro não se concretizou. O mundo continua dividido, violento, mas – e isto nos interessa muito – a violência de nossos dias se mostra diferente daquela que tanto afligia Einstein.

Hoje em dia, não há como contestar que a violência é uma presença insistente em nossa vida cotidiana. É inevitável deparar-se com ela, seja por experiência direta, seja pelo relato de alguém que nos é próximo, seja por sua onipresença nas mídias mais diversas. Tal realidade, contudo, seria o bastante para nos permitir afirmar que vivemos em um mundo mais violento?

Seria o Brasil, hoje, mais violento do que aquele dos nossos colonizadores, que exterminaram boa parte da população indígena que aqui habitava? Ou ainda: seríamos hoje mais violentos que no tempo em que a escravidão era a ordem da sociedade, mantida sob o peso da chibata?

A resposta de Freud a Einstein e o modelo civilizatório que nela se delineia permitem-nos refletir sobre as particularidades da violência em nossos dias, não pela escala de intensidade, mas pela forma diferenciada em que esta se apresenta. A grande diferença deste mundo violento para o de outrora – e em nosso país isso se mostra de maneira bem evidente – é a percepção de que a violência deixou de ser um assunto de nações, um privilegio do Estado, para se tornar uma prática privada. Não são mais os ideais coletivos que estão em cena.

Não há como não perceber que a violência hoje em dia não somente é disseminada, como também não encontra nas leis e nas práticas de contenção qualquer regulação. Ela se apresenta em cenas corriqueiras, como num desentendimento no trânsito, um desencontro em um bar, nas escolas, nos espaços da vida privada e, de forma mais brutal, no latrocínio, nas gangues, nas milícias, no tráfico de drogas e, por que não, nas chamadas torcidas organizadas dos times de futebol.

É em torno dessa nova realidade da violência que os psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise se reúnem em Belo Horizonte para o seu 20º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Com o tema “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, interessa-nos discutir em que a invenção freudiana, a partir dos avanços do ensino de Lacan, nos permite pensar, enquanto psicanalistas, caminhos para essa difícil realidade que afeta todos nós.

Os psicanalistas há muito não se restringem a seus consultórios. Eles hoje estão presentes nos serviços de saúde mental da rede pública, nos hospitais, nas instituições da defesa social, nas escolas, nos presídios, nas ruas. Tal presença se faz a partir da responsabilidade ética com nossa prática e com nossa experiência, que acreditamos que pode contribuir muito no enfrentamento de problemas que afetam a sociedade.

Para a psicanálise, a forma contemporânea da violência está intimamente ligada ao tratamento que se dá aos corpos em nosso tempo, mais especificamente, o tratamento que se dá ao que chamamos o corpo traumatizado. O corpo para a psicanálise não é uma amontoado biológico e, portanto, unicamente natural, regido por hormônios e neurotransmissores. O corpo é afetado, traumatizado pela palavra e, consequentemente, desnaturalizado.

Diferentemente do filhote animal, que ao nascer, conduzido por seu instinto, já se dirige ao úbere materno, ao filhote humano resta o choro e seus gritos como único recurso ao mal-estar de sua precária existência. E é na expressão desse mal-estar que se apoia o apelo à sua própria sobrevivência. De tal forma dependente do outro, o filhote humano tem seu corpo marcado pelas falas e cuidados deste que lhe acolhe. E nesse caminho criado na relação com o outro, seu corpo vai, pelo resto de sua vida, buscar de forma incessante e imperativa uma satisfação, um alívio para seu mal-estar estrutural, aquilo que a partir de Lacan chamamos de gozo.

Mal-estar


Sobre esta satisfação, essa busca que se eterniza em sua existência, o ser humano não tem o menor controle. Foi o encontro com esse outro em cada um de nós que permitiu a Freud a invenção da psicanálise. O ser humano, que da fala extrai sua condição de humano, tem assim com seu corpo uma relação de exterioridade e, por isso, não o somos, nós o temos. Tal singularidade humana tem como efeito uma relação de estranhamento com o próprio corpo, que passa a ser afetado pelas falas que recebe desde seus primórdios, um corpo que busca sempre se satisfazer.

Essa exterioridade com a natureza é emblematicamente denunciada pelas diversas formas que o mal-estar se apresenta contemporaneamente, como, por exemplo, em nossos problemas com a ecologia. Assim como destrói a natureza, o homem atua sobre os corpos, mais além de sua natureza, sempre na busca imperativa de satisfação. Daí a afirmação tão aceita de que o ser humano é o único animal que mata por prazer.

Esse é o trauma fundante do humano e que nos coloca tensionados pelas demandas deste corpo, que não se sacia jamais. Há em cada um de nós um outro, que Freud chamou de inconsciente, mas que bem diferente do que pode parecer, não se trata de uma memória, mas de um corpo traumatizado, sexualizado e que busca incessantemente uma satisfação que, como vindo de um outro em nós mesmos, não deixa de provocar estranhamento, conflitos e mal-estar.

Se anteriormente a demanda insaciável dos corpos podia ser temperada pelas leis, em função dos ideais coletivos que as sustentavam, o que vemos proliferar hoje é aquilo que alguns escolheram nomear como individualismo de massa. Hoje, a satisfação de cada um, distinto do que Freud então anunciava, não se contém pela lei ou pelos vínculos. O mal-estar de nosso tempo não se trata mais pela civilização, pelo menos não como anteriormente.

O avanço do mundo do consumo, com todos os seus recursos tecnológicos, e a redução de todos à igualdade aparentemente democrática do consumidor, esforça-se em reduzir cada sujeito ao que ele pode em seu direito de consumir. O mundo da técnica e os objetos que produz oferecem a cada um a sua droga lícita ou ilícita, sua cirurgia, seu telefone, seu computador, uma infinidade de produtos apoiados no direito ao consumo e na ilusão do gozo acessível, desde que comprado – e comprar é um direito que nos faz iguais.

Cada um busca sua própria satisfação, sua vitória sobre o mal-estar do corpo traumatizado, pela ilusão do consumo do produto, gadget contemporâneo, cada vez mais talhado para servir a cada um. O mundo se vê habitado em massa por indivíduos que buscam, naquilo que o consumo lhes oferece, sua satisfação, seu gozo. Constrói-se assim um mundo onde de cada um se faz um walking dead, cuja busca de satisfação não encontra limites na dor, nas formas de violência, e atua diretamente sobre os corpos, seja o próprio seja o do outro.

O toxicômano é a expressão máxima dessa lógica e não há, portanto, que se assustar com a sua prevalência nos dias de hoje. Ele simplesmente traz exposto em seu corpo o modo contemporâneo que a sociedade do consumo nos oferece para viver.

Provocados pela perplexidade diante dessa realidade, vimos surgir novas formas de segregação, como se nos livrando da diferença do outro pudéssemos por magia nos livrar da diferença que insiste em nós mesmos e que não cessa em nos cobrar a sua cota. Aparecem as agressões, as práticas violentas, as propostas de redução de maioridade penal, as internações compulsórias, as diversas formas de racismo ou os sonhos da volta de uma ditadura, como se um reforço das leis e da contenção pudessem domar a dispersão de nosso tempo. As propostas violentas, na medida em que não se apoiam mais em ideais coletivizados, produzem apenas respostas violentas. Assistimos a isso todos os dias.

A psicanálise se oferece nesse momento como um parceiro que tem a partir de seu campo de saber uma experiência e uma prática que nos permitem sustentar a aposta em um caminho diferente.

É possível inventar variáveis para uma relação menos devastadora com estes corpos traumatizados. É preciso criar espaço para as diferenças de cada um a partir do sintoma de cada um, sem que para isso sejam necessárias intervenções sedativas ou segregadoras.

Somos convictos de que um novo laço, um novo vínculo emocional pode ser construído entre os indivíduos, desde que haja lugar para o singular de cada um, que cada um, suportando sua própria diferença, horrorize-se menos com a diferença do outro e possa assim suportar esta diferença, sem o imperativo de fazer do outro um igual.

Num mundo sem grandes ideias ou ideais, a diversidade sustentada na absoluta diferença de cada um pode abrir espaço para um novo amor, bem mais civilizatório. Um amor da diferença.

Corpo e cidade

“Trauma nos corpos, violência nas cidades” é o tema do 20º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que está sendo realizado em Belo Horizonte até amanhã, no Dayrell Hotel e Centro de Convenções – Rua Espírito Santo, 901, Centro. Informações: www.encontrocampofreudiano.org.br

. Henri Kaufmanner é psiquiatra, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e diretor do 20º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

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