Sem banho e sem qualidades

Novela de Bernardo Ajzenberg, Minha vida sem banho põe em cena personagem que segue a estirpe de anti-heróis radicais, como Bartleby e Gregor Samsa, ancorado na realidade brasileira

por 22/11/2014 00:13
RCB Studios/Divulgação
RCB Studios/Divulgação (foto: RCB Studios/Divulgação)
Lyslei Nascimento



Há pessoas nascidas para a descontinuidade, afirma uma das vozes narrativas de Minha vida sem banho, de Bernardo Ajzenberg. Para esse narrador, tais pessoas não conseguem chegar até o fim em nada: ou se apressam e capotam ou se deixam tomar pela ansiedade e sufocam, em franca oposição ao que Michel Foucault analisou como o “cuidado de si”.

A novela, ou o pequeno romance de uma vida, de Ajzenberg, expõe o estranho projeto de dispensar o banho, diante do “consumo desenfreado e irresponsável de água – principalmente nas grandes cidades”, de Célio Soihet Waisman, um funcionário de um instituto de cunho ambientalista que resolve, a despeito da rejeição alheia, realizar esse escatológico projeto de pretensa decisão ecológica, mas nada higiênico.

Desistir do cuidado de si não é, no entanto, uma decisão aleatória. Por entre a confissão de um sujeito, imerso em uma grande solidão e julgando-se abandonado, a atitude extrema deixa vislumbrar, também, um desconsolo político de um nostálgico e doente militante de um socialismo utópico encenado na ficção.

“É uma opção minha, não um desleixo ou esquecimento”, afirma o narrador. No entanto, o corpo exibe, nos maus odores que produz, a fermentação da consciência de que num “país atrasado como o Brasil, incompatível com a existência de uma democracia verdadeira”, levar adiante a decisão de não tomar banho é criar uma atitude ímpar, autoral.

Desse modo, o corpo político, metafórico, anestesiado por uma ilusão de controle e poder, esgotado pelas utopias derrancadas do comunismo, migra para o corpo do personagem que deixa, nos humores que exala, fazer sentir o nauseabundo cheiro da derrota. Esse corpo, que ocupa espaços sem legitimidade, parece só poder se expressar por meio de uma atitude não higiênica que faz transparecer a morte de sua tintura ideológica. O projeto de Célio de não tomar banho é, portanto, um desejo de construir, por meio da sujeira, uma abjeção revolucionária virtual, mas o que ele consegue é que seu corpo se deteriore, tal qual as ideias políticas que o envenenam.

Por isso, fungos e outros possíveis micro-organismos nocivos à saúde proliferam e fazem com que o cheiro ruim do corpo do personagem, tal qual o seu intento, o qual desejava ser político, entre em degradação e morte. O ritual judaico de lavar as mãos após um funeral, no entanto, coloca esse personagem numa outra rota. Se lavar é como se limpar dos maus agouros, permanecer na imundície, dispensando o banho, é naufragar na perda total das esperanças.

Uma longa lista de anti-heróis pode ser lembrada aqui: Bartleby, um jovem e melancólico escrivão, de Bartleby, o escriturário, 1853, de Herman Melville, que, diante das demandas do escritório onde trabalha, responde sempre “eu preferiria não fazer”; Ulrich, um jovem matemático que busca um sentido para a sua vida e para a realidade, mas que acaba por fracassar em tudo em que se aventura, em Um homem sem qualidades, 1930-1943, de Robert Musil; e Gregor Samsa, personagem de A metamorfose, 1915, de Franz Kafka, obrigado a se tornar um caixeiro-viajante para sustentar financeiramente sua família, mas, numa manhã, vê-se transformado num repulsivo inseto. Célio Waisman, de Minha vida sem banho, de Bernardo Ajzenberg, se inscreve, assim, nessa poderosa tradição de homens sem qualidade. No entanto, humanos, demasiadamente humanos.

. Lyslei Nascimento é professora de literatura na Faculdade de Letras da UFMG.


Minha vida sem banho
De Bernardo Ajzenberg
Editora Rocco
190 páginas


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