Livro de Nélida Piñon reúne contos com a família como tema central

'A camisa do marido' traz nove histórias que abordam a constelação de dores e violências em torno da família

por João Paulo 22/11/2014 00:13
Carlos Hungria/CB/D.A Press
Nélida Piñon localiza a maioria de suas histórias no contexto rural, para ressaltar a dimensão mítica (foto: Carlos Hungria/CB/D.A Press)

O novo livro de contos de Nélida Piñon, A camisa do marido, reúne nove histórias sobre a marca da família na vida das pessoas. Para o bem e, sobretudo, para o mal. Autora de romances ambiciosos, que narram sagas que atravessam eras e lonjuras, Nélida é também exímia na mira do detalhe significativo, do caso exemplar, do sutil desvão da alma. As histórias do novo livro, embora marcadas pela contenção, podem ser vistas como um olhar microscópico sobre as paixões humanas, que compõem um painel ampliado da condição humana.

A sensação, à medida que os contos se sucedem, é de que há uma linha a coser as narrativas, que passa pela linguagem clássica, trabalhada com extremo cuidado (o livro é dedicado a Machado de Assis, “mestre de todos”), pela inclinação mítica dos contos e pela visão de mundo atravessada de certa melancolia. Há ainda um desequilíbrio permanente, uma tendência para a violência e para a afirmação de nossos desvios de formação moral, como o machismo. Psicologia e sociologia em pura expressão artística.

Outra característica que dá certa unidade ao conjunto é a localização das histórias, predominantemente rurais, como numa aposta na limpidez máxima do tema tratado, sem espaço para derivações ou confusões próprias do multifacetado cenário urbano. É como se a escritora definisse, na secura do ambiente rural, um grau zero da emergência dos mitos. Como o sertão de Rosa, um espaço que é ao mesmo tempo físico e metafísico.

No entanto, Nélida, atenta ao gosto pela variedade próprio do leitor de histórias curtas, põe também em funcionamento sua hábil máquina narrativa, alternando vozes (às vezes na mesma história), países, épocas e classes sociais. Unidade na diversidade, A camisa do marido é um caleidoscópio da presença familiar na genealogia dos afetos, paixões e ódios. A cada mudança de página, há uma reconfiguração, um novo jeito de olhar o mesmo problema. As personagens, de certa forma submetidas ao jugo do drama familiar, são sempre seres que anseiam pela libertação.

Os contos de A camisa do marido, a começar pela narrativa que dá nome ao livro, trazem muitas cenas de violência e morte. Há ainda a atração física proibida, a humilhação, o ódio entre irmãos, a irmã ausente, o abandono, a vingança, a perda do amante que morre durante o ato sexual, a sombra do incesto, o espectro do crime, o desejo, a sensação de desamparo. A família, solo de todas as emoções, por vezes parece ser o esteio de ódios, por outras, a determinação a ser vencida.

Imóvel


O conto “O trem”, passado numa cidade do interior de Minas Gerais, lembra, pela poesia tocada de mistério, o clássico “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. O personagem da história, o pai, passa a vida sonhando em levar a família para conhecer o mundo a bordo de um trem. Numa viagem imóvel, embarca um dia os filhos e a mulher numa composição abandonada e percorre a geografia imaginária que os mantinha unidos: “Daqui, do Brasil, iremos para Veneza”, decreta.

Nélida convoca ainda personagens históricos e literários, como Dulcineia de Toboso, uma mulher simples, confusa frente à sedução enlouquecida de Quixote; e o já velho poeta de Os Lusíadas, Camões, na derradeira narrativa do livro, “A desdita da lira”. São momentos que parecem se afastar da temática mais explícita das relações familiares, mas que dialogam com ela em outros registros. No jogo literário da escritora, o passado está vivo.

A camisa do marido caminha entre a morbidez e o ódio, o sonho e o lirismo, a sensação de perda e a busca de libertação. O equilíbrio sutil alcançado pela linguagem sublime por vezes parece deixar em segundo plano a alta fantasia e invenção da escritora. O que é um paradoxo que se revela como qualidade suprema da ficionista: fazer da vida inventada um espelho da realidade possível. Nem tudo é verdade. Mas é tudo humano demais nos contos de Nélida Piñon.

Vida e obra

Nélida Piñon é carioca e estreou na literatura em 1961, com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo. É autora de mais de 20 livros, entre romances, contos, ensaios, memórias e literatura infantojuvenil. Suas obras estão traduzidas em vários idiomas, tendo conquistado importantes prêmios nacionais, entre eles, o Jabuti, e internacionais, como o Juan Rulfo (México), Rosalina de Castro (Espanha) e Gabriela Mistral (Chile). Pelo conjunto da obra, recebeu o Prêmio Príncipe de Asturias, um dos mais importantes da Europa. Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1990 e, em 1996, tornou-se a primeira mulher a presidir a instituição. Entre suas obras, destacam-se os romances Fundador, A República dos sonhos e A doce canção de Caetana; os volumes de contos Sala de armas e O calor das coisas; e os livros de memórias Coração andarilho e Livro das horas. Este ano, lançou a fotobiografia Tenho apetite de almas.

“Após o enterro, já no quarto sozinha pela primeira vez em trinta anos, Elisa se desnudou. O espelho revelava um corpo envelhecido. Para este momento, escolheu a camisola da noite de núpcias, com cheiro de naftalina, há anos na gaveta. E pensou o que fazer com as peças íntimas do marido, que ele preservara como lembranças da noite de amor que haviam vivido. Decidiu, então, que a camisa do marido o substituiria no leito. Por isso, guardou a peça, manchada de sangue, dentro de uma urna posta na cama, como a lembrança mais duradoura do homem. Relíquia que demonstrava um zelo que ele teria apreciado.

Com essa decisão, ambos teriam uma outra noite, mais feroz que a primeira, para se amar. E, a partir daquele dia, passaria a considerar os trapos destroçados pelo punhal assassino um símbolo daquele que não a deixara por vontade própria, e que antes jurara permanecer ao seu lado até a morte. Não haveria outro homem em sua cama.”

A CAMISA DO MARIDO


De Nélida Piñon
Editora Record, 160 páginas, R$ 32

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