Corpo, casa e cidade

Revista Piseagrama, um dos mais interessantes projetos editoriais do país em torno do espaço urbano, completa seu primeiro ciclo e abre campanha para financiamento por meio de plataforma colaborativa

por 15/11/2014 00:13
Ana Prata/Reprodução
Ana Prata/Reprodução (foto: Ana Prata/Reprodução)
João Paulo


Há uma conjunção de crises que faz com que uma revista seja algo importante para clarear o horizonte. A economia se fortalece em torno do mercado financeiro e concentrador; a política perde seu potencial mobilizador e se afigura como um cenário a ser evitado; a comunicação parece ter perdido o rumo da verdade em nome do efeito e do consumo; as cidades perderam a capacidade de ser o espaço para exercer a liberdade; e a cultura, essa, então, nem se fala.

É para responder a esse contexto que surgiu, em 2011, a revista Piseagrama. Selecionada por um edital público, completou o ciclo de seis números semestrais, nucleados em torno dos temas Acesso, Progresso, Recreio, Vizinhança, Descarte e Cultivo. Foram edições ricas em textos, imagens, desenhos, fotografias, teses e propostas.

O projeto tinha um alvo: constituir uma arena pública de reflexões sobre o espaço urbano e tudo aquilo que o habita. Entre os colaboradores, do Brasil e de outros países, arquitetos, urbanistas, filósofos, artistas plásticos, fotógrafos, escritores e designers. Um conjunto heterogêneo, que vai do testemunho ao saber técnico. Piseagrama foi uma resposta ao enclausuramento do espaço público para o debate sobre a vida nas cidades. Tudo que a imprensa e a academia silenciaram ganhou voz na revista.

Mais que uma publicação, Piseagrama se tornou uma referência para os interessados em entender as cidades e as pessoas que nelas vivem. Assuntos como transporte urbano, mapas, tarifas, lixo, canteiros, uso de defensivos agrícolas, bicicletas, arquitetura, ambulantes, ruas e praças, automóveis, engarrafamento, lazer, sustentabilidade, escolas, clubes, skate, vizinhos, vilas, comunidades, rios, trens, poluição, jardins e hortas são apresentados sempre de forma inteligente e desafiadora.

O conjunto dos seis números de Piseagrama forma uma espécie de portfólio de possibilidades para quem acredita no poder da comunicação. Em dois sentidos: em primeiro lugar, pela seleção atenta de tudo aquilo que de fato interessa ao habitante da cidade; em seguida, pela inversão da lógica da imprensa, centrada de forma excessiva nos problemas e em soluções previamente validadas pela tradição. O leitor encontra temas com os quais não se depara habitualmente e é convidado a pensar de forma original sobre eles. No fundo, há uma certa aposta no poder iluminista da razão: a inteligência não nos falta, está apenas escondida.

Há textos que instigam o leitor-cidadão. Sobre o deslocamento nas cidades, por exemplo. Em De bicicleta, pela direita, Roberto Andrés, arquiteto e um dos editores da Piseagrama, mostra as formas como o Partido Conservador inglês e o PMDB carioca tratam a questão do deslocamento de bicicleta pelas ruas de Londres e do Rio de Janeiro. Se o assunto é transporte coletivo, nada melhor que o artigo do arquiteto sueco Kristoff Roxbergh, De ônibus, que parece nos ensinar o suave prazer de andar de coletivo (ele intui até uma semelhança entre o jeito jocoso e racional do sueco e do mineiro, de que nem desconfiava), ao mesmo tempo que estranha a absoluta falta de informações ao usuário.

Em outros momentos, os artigos e ensaios trazem relatos de experiências políticas, como Direito à moradia, acesso à casa própria, da arquiteta e também editora da revista Fernanda Regaldo, que acompanha momentos tensos da ocupação das torres do Edifício San Martin, em Belo Horizonte. Ou o relato da memória afetiva de Aleluia Heringer Lisboa Teixeira, sobre o Estadual Central, também de BH. As experiências da nossa cidade são colocadas ao lado de outras, vindas de Bogotá, Amsterdã e Itaobim.

Alguns textos, mais filosóficos, ensinam que “acessar é melhor que possuir” e até que a grama não é aquele verde todo que muita gente pensa, inclusive com sua preocupante pegada de consumo de água. Vários ensaios, que argumentam por imagens, refazem os circuitos viciados de olhos presos na paisagem vista da janela do automóvel, do centro das cidades, dos cenários ordenados e sem espaço para o homem e seus imprescindíveis campinhos de futebol. A presença, a ausência e a presença da ausência. A cidade tem uma lógica viva, uma dialética própria em busca de novos circuitos, inteligência e emoção. Piseagrama é um mapa.

Há revistas e revistas. Certas publicações pretendem ser olímpicas, imparciais e independentes, o que quase nunca cumprem. Piseagrama não tem pejo em ser comprometida. Além da explícita linha editorial, libertária e crítica ao capitalismo e suas consequências econômicas, sociais e humanas, a publicação tem mostrado postura militante e ativista em vários episódios da vida cultural e política da cidade.

Foi assim durante a Copa do Mundo, com uma ocupação festiva do espaço urbano e na circulação do ônibus com catraca livre; nas ocupações culturais de ruas e praças (do hip-hop ao carnaval); na retomada do Festival de Inverno da UFMG na capital; e até mesmo na parceria com exposições, como Escavar o futuro, da qual foram responsáveis pelo livro-catálogo, um dos mais interessantes e consistentes já publicados na cidade. A presença em outros movimentos urbanos, de contestação e ocupação, tem feito parte da trajetória do coletivo.

Texto e imagem Entre os colaboradores que escreveram em Piseagrama, estão o cofundador da revista Wired Kevin Kelly, o economista Ladislau Dowbor, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o ex-prefeito de Bogotá Enrique Peñalosa e o procurador da República Felício Pontes Jr. Já os artistas comparecem com trabalhos em diferentes técnicas (fotografias, desenhos e instalações), como a espanhola Maider López, a suíça Ursula Biemann e os brasileiros Cinthia Marcelle, Paulo Nazareth e Detanico & Lain.

A revista foi selecionada pela rede internacional de publicações Archizies para compor uma mostra de revistas na Bienal de Arquitetura de Veneza. Foi também incluída na seleção internacional de publicações independentes de arquitetura e urbanismo da revista holandesa Volume.

A publicação se prepara para viver nova fase, por meio de financiamento colaborativo, via Catarse (catarse.me/piseagrama). A ideia é criar formas mais próximas de relação com os leitores, que se tornam parceiros de um novo emprendimento. Os editores anunciam novo projeto gráfico e editorial, com mais páginas, ao estilo dos dossiês, com a incorporação de estudos mais aprofundados.

O primeiro número do novo ciclo terá como tema Passeio. De acordo com Roberto Andrés, a ideia é abordar as caminhadas, as calçadas, o tempo não produtivo nas cidades e no campo, o turismo e a condição pedestre. E revela uma novidade: “Contaremos com um artigo inédito em português do escritor Will Self, com um trabalho novo do artista Paulo Nazareth, além de artigo do urbanista Jan Gehl, trabalho do Francis Allys e, como prata da casa, reportagem da jornalista Carol Abreu sobre rolezinhos”.

Como destacam os editores, o interessado será mais que um simples apoiador. “Ele se torna assinante, recebendo as duas próximas edições em casa com 20% de desconto”. As informações e o cadastro para os interessados podem ser encontrados no site www.piseagrama.org.

A visita ao endereço eletrônico possibilita ainda compartilhar os artigos já publicados e outros produtos relacionados com o coletivo, como o interessante Guia morador, que oferece um olhar singular sobre Belo Horizonte. Em vez dos pontos turísticos, o leitor aprende sobre os pássaros da cidade, as fontes, as hortas comunitárias, os times de futebol de várzea e até sobre a vida dos carroceiros.

Vista do alto, toda cidade parece resolvida e exata, como pontos de um mapa racionalmente pensado e executado nas pranchetas. Mas, para ver a vida real, é preciso deixar as idealidades de lado e tocar as coisas. Sentir a proximidade das pessoas. Cheiro e calor. Detalhes. Deslocar ao ritmo de um passo de cada vez. Fazer política em cada gesto. Ocupar. Pisar a grama.

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