Poesia é compaixão

Com O perdão imperdoável, a poeta Maria Carpi escreve sobre os abismos e as aleluias luminosas da alma humana

por 15/11/2014 00:13
Bertrand Brasil/Reprodução
Bertrand Brasil/Reprodução (foto: Bertrand Brasil/Reprodução)
André di Bernardi Batista Mendes



A poeta gaúcha Maria Carpi acaba de lançar, pela Editora Bertrand Brasil, O perdão imperdoável. Por meio de uma poesia forte, ela mostra que o perdão é um dos sentimentos mais complexos do ser humano. Ela propõe uma reflexão a respeito do amor e questiona: estarão as pessoas prontas para amar e serem amadas? A poeta coloca o dedo na ferida ao falar de culpas e remissões.

O livro ilustra os diversos tipos de perdão com que cada um se depara na vida, desde o nascimento até a morte. Ela fala, por exemplo, do alívio do autoperdão, do sentimento de paz que transborda diante deste fogo estranho: “Precisei/ envelhecer para perder/ todas as metáforas. E saber/ que o céu é aqui, bem perto,/ onde se pode ainda perdoar”.

Maria Carpi faz o impossível. Ela agrega em cada verso, dentro de cada poema, uma confluência absurda de sentidos onde cabem várias estradas possíveis. Esta poeta de mão cheia escreve com todo o tamanho de um coração varrido de senso e sentido. Cabem sentimentos, existem sentimentos que atormentam tanto, existem situações extremas que só podem ser ditas através da poesia. Encarar de frente este bicho de sete cabeças exige força, preparo, coragem e desprendimento, para melhor agarrar, para melhor captar, para assim abraçar com braços de gente tudo que cabe no mundo. E o mundo é grande, como já disse Drummond. Transparecem, escorrem dos textos de Maria Carpi doses de carinho.

Se no livro O herói desvalido a poeta “transcende para dentro”, desafia, ameaça, e coloca amorosamente “a lâmina a um palmo das veias da palavra, da pulsação da palavra”, em O perdão imperdoável ela vai além, também ultrapassa, excede, até chegar ao outro, até chegar ao cerne de si mesma.

Maria Carpi não tenta dissecar, não tenta soluções ou ainda explicações para tudo que cabe em seus poemas: e nem poderia. Como apaziguar um sol que despenca, que reside na boca desta poeta pronta? Certos sentimentos são inexoráveis. O perdão é nosso, é humano. O amor, como também as intempéries, as injúrias. Nos protege, nos versos de Maria, uma “milícia celeste”. Os poemas de Maria Carpi dormem, descansam perto das intensidades, perto das misericórdias de Adélia Prado.

A escritora ensina: o perdão não tem precedentes. O perdão acorda e vai dormir conosco. Cresce aquele que perdoa, liberta-se o perdoado. Perdoar é rápido e rasteiro. Mas é preciso fé e foco, alma e muita, muita paciência e esperança. Aquele que perdoa não sabe o que faz, mas pressente. O perdão reinaugura fidelidades, pois no bem no fundo ainda existem resquícios de algo bom. O coração daquele que perdoa se transforma numa flor incendiada.

“Há que se perdoar/ o amigo que nos traiu// e muito mais o amigo/que nos salvou.” Deveria ser natural: uma pessoa ajudando a outra. Maria Carpi disponibiliza toda sua sensibilidade. Poesia é isso. Ela nos ensina a vermos melhor, nos ensina outro tipo de mandamento. Um chamado todo feito de delicadeza. É preciso “não perdoar a falta, mas o julgamento”.

“A respiração do perdão,/ sopro boca a boca,/ a tudo invade e movimenta/ as folhas da árvore// da vida e do livro.” Perdoar exige a destreza dos samurais. Perdoar é o mesmo que fulminar. Aquele que perdoa detona o outro com um punhado de rosas. Perdoar ativa mecanismos, perdoar inventa engrenagens de fazer vento e amplidão. Todo perdão começa por dentro. Míssil ao céu, este processo de escolhas difíceis agrega a cada patamar um processo indescritível de amor, de amores. Parece bobo, parece fácil? “Deus continuará a ser/ escrito e perdoado.”

Abismos

“Há que se perdoar a injúria// e muito mais a inocência/ que ofereceu o rosto/ à injúria.” O livro de Maria Carpi, como toda sua poesia, é fruto de meditações. Certas situações são incontornáveis. A poesia é uma delas. Esta poeta brinca com fogo ao pronunciar, ao escandir o seu verbo que se torna bonito, quando surgem palavras vindas do mais profundo. E neste abismo existem lâmpadas e luzes de uma intensidade razoável, simples, de medir o infinito.

“Apenas podemos perdoar/ o nome do nascimento.” Maria Carpi deve ser religiosa. No sentido mais amplo da religiosidade e com tudo que isso implica. A poeta fala dos caminhos de Deus e suas moradas. Trata-se de um processo que visa, que exige nada menos que a liberdade. O perdão é o primeiro passo. A compaixão é uma espada que fere ao inverso. A compaixão é uma lâmina que transfigura, que tira leite das pedras, que lapida a palavra, a ponto de vermos o verso pronto.

“Amar demais escapa/ à tolerância do perdão humano.” O perdão imperdoável não é um livro fácil de se ler. Este tipo de poesia exige mais do leitor. Exige uma atenção especial, pois o melhor dos poemas cabe nas dobras, nas entrelinhas. Maria Carpi não brinca quando esconde nos desvãos dos seus poemas pérolas e diamantes, mas também rosas e os seus pontudos espinhos. Não se trata de sabedoria, ou inteligência. Não que tudo isso seja prescindível. Pelo contrário. Mas a poesia de Maria Carpi é feita de suspiros, de conhecimentos outros. Seu coração bate num compasso de buscas e descobertas.

Perdoar auxilia vencidos e vencedores. Como disse o filho de Maria Carpi, Fabrício Carpinejar, na orelha do livro: “Pois amar é rápido, já perdoar é demorado. Amar é dar-se para alguém, já perdoar é anular a glória da vingança. Perdoar não tem visibilidade, não tem vaidade, é a mais profunda solidão”. Poesia é sinônimo de mãe. Os poemas de Maria Carpi nos recebem, de braços abertos.

Maria Carpi nasceu em Guaporé, é professora, advogada, defensora pública e autora de diversos livros, como As sombras da vinha e O herói desvalido. Ganhou o prêmio Revelação Poesia/90, da Associação Paulista de Críticos de Arte, por seu livro de estreia, Nos gerais da dor.


O PERDÃO IMPERDOÁVEL

. De Maria Carpi
. Editora Bertrand Brasil, 144 páginas, R$ 25



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