Ricos até quando?

O mais comentado livro de economia lançado nos últimos anos, O capital no século XXI é lançado no Brasil. Estudo de Thomas Piketty coloca em primeiro plano a questão da desigualdade no capitalismo

por 15/11/2014 00:13
Janerik Henriksson/Reuters
Janerik Henriksson/Reuters (foto: Janerik Henriksson/Reuters)
João Paulo



Existem livros que chegam precedidos pela fama. É o caso de O capital no século XXI, do economista francês Thomas Piketty, que finalmente foi lançado no Brasil, pela Editora Intrínseca, com tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Apresentado ao mundo no começo do ano, suas teses há muito deixaram de ser transmitidas pelo próprio texto para ganhar tradução em resenhas, artigos e críticas em todo o mundo. Entre os que se dedicaram a escrever sobre o trabalho de Piketty, estão detentores do Nobel de Economia, como Paul Krugman e Robert M. Solow. O livro conquistou admiradores e críticos à direita e à esquerda.

O título faz referência a O capital, de Karl Marx, e pode, no primeiro momento, parecer que se trata de uma obra ambiciosa que dialoga com o maior clássico da economia política acerca do capitalismo. Mesmo Marx sendo um pensador presente do começo ao fim no livro de Piketty, e além de o novo livro se estruturar como uma análise histórica ao modelo do materalismo histórico, o momento é outro, o método é outro e, sobretudo, é outro o objeto. O livro poderia se chamar, sem perder em nada sua abrangência, A desigualdade no século XXI.

A economia – e é só acompanhar o comentário dos analistas mais célebres na academia e nos meios de comunicação – tem uma sedução avassaladora pela produção. Temos um caso de amor pelo PIB e uma ojeriza por tudo que cheire a impostos e tributos. Na verdade, a distribuição de renda e a busca da igualdade sempre foram o patinho feio da economia. O discurso econômico mais aceito é sempre aquele que coloca em evidência a produção, os bens e serviços, mas quase nunca, a repartição de renda como forma de diminuição das desigualdades.

Thomas Piketty é diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais na França e professor da Escola de Economia de Paris. Sua dupla inserção acadêmica já indica que seus interesses fazem confluir tanto a pesquisa de natureza social quanto econômica. E foi juntar as duas pontas, ao lado da decisão de mergulhar no fenômeno da desigualdade, que fez de seu estudo um clássico de nascença. Não se trata de uma tese de natureza filosófica, mas de um paciente e acurado estudo de história econômica, que apresenta conclusões que mexem com a estrutura do capitalismo como o concebemos hoje.

Sempre que se lê que uma minoria detém grande parte da riqueza e a ampla maioria luta apenas para sobreviver, parece que estamos num terreno que fica entre a inevitabilidade e a ideologia. Afinal de contas, não foi sempre assim? O esforço de Piketty e seus colaboradores é exatamente mostrar que não. Que se trata de uma construção histórica e, o que é mais grave, com tendência a se tornar tão extrema a ponto de inviabilizar a própria funcionalidade da economia capitalista. Deixados ao seu curso natural, alerta o autor, os ganhos de capital se tornam maiores que os da produção, gerando uma concentração de renda inviável.

O capitalismo dos rentistas não é sustentável. Se cada cientista que chama atenção para algo que não foi percebido tem sua fórmula, Piketty também tem a dele. Para expressar a contradição central do capitalismo, a partir de sua história econômica que remonta ao século 18 e a dados pacientemente coletados em vários países, o economista propõe uma fórmula que não é preditiva, mas um sinal de alerta: r>g. A equação pode ser lida da seguinte maneira, de acordo com palavras do próprio economista: “A principal força desestabilizadora da economia de mercado está relacionada ao fato de que a taxa de rendimento privado do capital, r, pode ser forte e continuamente mais elevada que a taxa de crescimento da renda e da produção, g.”

A consequência é que o patrimônio originado no passado tenha hoje a tendência a se recapitalizar no mercado de rendimentos financeiros, que cresce muito mais rápido que os ganhos da produção. É uma equação que todo brasileiro conhece de cor: para quem tem muito dinheiro, é melhor ficar nos ganhos de capital, que dá menos trabalho e mais retorno, além de pagar menos imposto. Piketty alerta que as taxas atuais de retorno no mercado de capitais lembram a situação vivida no começo do século passado, o que daria aos tempos atuais uma aura de Belle Époque. Com seu glamour e seus riscos de bancarrota.

O propalado círculo virtuoso, que defende que a produção gera lucro que é reinvestido na produção, levando a uma distribuição geral dos ganhos, é uma falácia. Funcionou durante um curto período em meados do século 20 e virou ideologia. O capitalismo rentista (e não há pibão ou pibinho que mude essa história) é hoje o melhor negócio. Sua taxa de remuneração é mais alta que a média histórica das taxas de crescimento das economias nacionais. A conta não fecha e o sistema, em vez de progredir, regride ao perfil do chamado capitalismo patrimonial. Os ricos cada vez mais ricos e em menor número. As consequências sociais são evidentes. Assim como as saídas: alguém tem que pagar a conta.

Disfunção


Piketty revolucionou a forma como compreendemos as tendências de crescimento das desigualdades a longo prazo. Em primeiro lugar, além de pôr o tema no centro de sua pesquisa, teve a coragem de convocar um sujeito que quase sempre fica oculto nessa história, os muito ricos (a não ser que padeçam de vaidade doentia, que geralmente os derruba moral e financeiramente). Geralmente, os estudos sobre disparidade de renda se concentravam nas faixas intermediárias, opondo trabalhadores mais ou menos aquinhoados. Um jogo que servia para manter o mito da falsa meritocracia estrutural nas sociedades capitalistas. Além disso, rico paga pouco imposto e, no Brasil, pouquíssimo quando se trata de transmissão de fortunas.

O economista francês provou – é sempre importante destacar a consistência de seus dados – que está no grupo do famigerado 1% das grandes fortunas a raiz de boa parte da disfuncionalidade econômica mundial. E, o que é mais expressivo, as elites de hoje não são assim tão diferentes das do século 19. Se naquela época contava apenas a hereditariedade, hoje viveríamos um cenário em que o mérito e o talento teriam o poder de mudar o jogo. Não é, na verdade, o que se observa. O que o começo do século 21 está mostrando não é apenas um crescimento da desigualdade, mas um retrocesso patrimonialista de fazer inveja aos romancistas realistas do século 19. Piketty – como Marx, mais uma vez – gosta de literatura e cita com propriedade os mecanismos sociais de transmissão de riqueza em obras de Balzac e Jane Austen. As pessoas daquela época eram obcecadas por heranças, fortunas e casamentos de ricos. Mudou muito?

Toda a análise histórica, sociológica e econômica de Thomas Piketty – rica e elegante demais para ser resumida – parece se encaminhar para uma série de perguntas: o que podemos fazer para recompor a face humana do capitalismo, torná-lo menos desigual, mais democrático e eficiente? Como diminuir não apenas a desigualdade dentro de um país, mas a miséria no mundo? De que forma é possível conciliar a necessidade de crescimento com as limitações dadas pelo risco à natureza? Como fechar uma conta que coloca de um lado um rendimento de 4% a 5% ao ano com o rentismo, frente ao crescimento econômico da produção na faixa de 1% a 1,5%, registrados historicamente? Como impedir que grande parte do mundo trabalhe para manter um padrão inviável de consumo de uma parte mínima da população dos países ricos?

Fica para o fim do livro o caráter propositivo de Piketty, que seria utópico caso o diagnóstico não fosse tão coerente: os ricos precisam pagar a conta. Não se trata de vingança ou de um retorno do reprimido, para usar terminologia freudiana, mas de uma resposta econômica para uma crise econômica. Em outras palavras, é preciso tributar as grandes fortunas e heranças, a fim de impedir que o crescente poder da riqueza hereditária complete o ciclo regressivo, afundando o mundo num capitalismo patrimonial insolvente e profundamente desigual. Piketty defende o imposto sobre as grandes fortunas e uma tributação progressiva que está muito longe de ameaçar a enorme maioria. Quando ele fala em rico, não está se referindo aos exibicionistas de plantão.

Alguém acha que os “ricos” vão aceitar esse conselho? Por isso Piketty faz questão de ligar sua proposta ao jogo político democrático e à transparência das informações econômicas. É um esforço de civilização que se coloca diante do mundo.

O capital no século XXI trata ainda de muitas questões fundamentais para a economia e a sociedade contemporâneas. São questões acerca do impacto do crescimento chinês, do advento dos supersalários, do salário mínimo, do aquecimento global, do Estado social, da meritocracia, da oligarquia universitária, da evolução do ranking de milionários e por aí segue. Um programa de temas bastante populares, que vão sendo tratados ao longo do argumento central do livro. Como é raro quando se trata de economia, Piketty consegue articular o importante com o interessante.

As análises do economista francês, que tanto impacto vêm causando no mundo, certamente serão lidas no Brasil com um grão de ceticismo. Se para os países ricos trata-se de recuperar um estado já vivido de possível igualdade, entre nós esse esforço não tem muito onde se mirar. Entramos no século 21 sem que os avanços do século 20 tivessem sido vividos de forma universal no Brasil. O que poderia ser uma falta, talvez se transforme num argumento: sabemos, na pele, o que é viver um capitalismo patrimonialista e estruturalmente injusto, sem precisar retroceder muito no tempo. Nosso passado explica, mas não condena.

O capital no século XXI


. De Thomas Piketty
. Editora Intrínseca, 672 páginas, R$ 59,90

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