Sonho de liberdade

Detentos da Apac de Itaúna, participantes de oficina de comunicação do projeto A Estrela narram em conto inédito episódio que recria experiências vividas por jovens como eles

por 15/11/2014 00:13
Leó Drumond/Divulgação
Leó Drumond/Divulgação (foto: Leó Drumond/Divulgação)
Felipe Márcio Leite e Tiago Ismael Silva



As ruas estavam asfaltadas. Eu não reconhecia as casas do caminho, passei por um bairro inteiro que eu nunca tinha visto. Meu irmão parou o carro em frente a uma casa que eu também não reconheci. Era da minha mãe. Pintura nova, muro mais alto e dois cômodos a mais.

Os celulares também mudaram. Nem consigo mais mexer neles, fiquei parado no tempo. Um sobrinho me mostrou um tablet. Não acreditei em quanta tecnologia existia dentro de um objeto tão pequeno. E os carros? Tetos solares, câmbios de marcha atrás do volante. Se eu demorasse mais para voltar, acho que já estariam voando.

Esperei tanto por esse momento. Contei cada um dos dias nesses 10 anos. Dez anos, três meses e cinco dias. Poucas notícias aqui do lado de fora. Será que o juiz aceitou minha apelação? Minha esposa não respondeu à minha carta. Será que recebeu? Domingo está chegando, espero que alguém venha me ver.

Minha esposa foi algumas vezes. Depois cansou. De vez em quando, mandava fotos do meu filho. Mas as cartas sempre demoravam a chegar. Só minha mãe foi todos os domingos. Foi a única que não me abandonou. Chegava sempre chorando, mas nunca deixava de ir. Reclamava da humilhação. Revista em porta de presídio não perdoa ninguém. A família acaba pagando cadeia junto com a gente.

Mas agora passou. Quero só pensar no futuro. Eu mudei. Envelheci. Foram 10 anos e o mundo não parou para me esperar voltar. Conseguir emprego agora está mais difícil. Pedem ensino médio completo para qualquer trabalho, antes não era assim. Também pedem experiência. Me perguntam o que fiz nos últimos anos. Não tenho carteira assinada para apresentar, estava preso. Porta na cara.

Meu filho cresceu, está maior do que eu. Gostaria de ter passado mais tempo com ele, mas às vezes acho que ele tem vergonha de mim. Ou raiva. A verdade é que não sei muito sobre a vida dele. Espero que tenha aprendido com os meus erros e não siga o mesmo caminho que eu. Vejo hoje crianças de 13, 14, 15 anos no crime. Garotos que estavam nas fraldas quando fui embora agora estão armados. Antes não era assim.

Um deles morreu no dia que eu voltei. Era filho de um amigo meu. Levou tantos tiros que era difícil até reconhecê-lo. O pai dele ficou desesperado. Isso não é certo, são os filhos que precisam enterrar os pais, não o contrário. Mas hoje os jovens morrem cedo, é muita criminalidade. Ou morrem ou são presos. Não sei o que é pior.

A irmã do Caio também cresceu. Quando a vi pela última vez, ela tinha 13 anos. Agora, é uma mulher bem atraente. E eu, solteiro. Nós nos encontramos na sorveteria, era uma bela tarde de domingo. Ela me reconheceu, conversamos, saímos juntos. Rolou. Mas foi coisa de momento, não foi para frente.

Muitos dos meus amigos morreram. Outros mudaram totalmente de vida. A maioria continua na mesma vida de sempre. Um deles veio me oferecer droga para vender. Disse não. Já perdi muito tempo da vida na prisão. Estava em condicional, queria evitar ao máximo qualquer problema. Mas quando a gente pensa que tudo vai ficar tranquilo, de repente vem um problema. “Ei, você tem que me pagar aquela droga.”

O cara chegou já cobrando, mas essa droga era de 10 anos antes. Eu não derramei a droga, só não paguei porque rodei, fui preso. Perdi a droga toda, então não vou pagar nada. “Como assim, não vai pagar? Você me deve, vai ter que pagar.” Se eu tivesse derramado a droga, era a minha cara pagar. Mas eu fui preso com a droga, então não vou pagar. “Vou te fazer pagar.”

Comprei uma arma. Ideia errada, cabeça fraca a minha. Mas o cara podia aparecer para cobrar e eu tinha que me preparar. Ele não apareceu. Soube que o mataram. Não fui eu que matei, mas achei bom. Quero me afastar disso tudo. Não vou dizer que dessa água não bebo mais porque não sei o dia de amanhã. Mas agora tenho outros planos para mim.

Reencontrei a mãe do meu filho. Ela me apresentou Jesus Cristo. Minha vida mudou. O que era vergonha, o Senhor honrou. Depois dos momentos ruins, outros bons virão. A vida passa por nós em segundos. E foram muitos segundos na cadeia. Vou mudar de vida. Me dá uma chance?


Felipe Márcio Leite e Tiago Ismael Silva atualmente cumprem pena em regime fechado na Associação de Proteção ao Condenado (Apac), em Itaúna, MG. Eles foram alunos do projeto A Estrela, que ocorreu na unidade prisional entre 27 de outubro e 4 de novembro. O curso consistiu em aulas sobre técnicas e conceitos da comunicação profissional e atendeu 19 detentos e dois funcionários da Apac.

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