Fidelidade ao tempo

Escritora portuguesa lança no Brasil antologia de contos e o romance Combateremos à sombra

por 08/11/2014 00:13
Eduardo Trópia/Divulgação
None (foto: Eduardo Trópia/Divulgação)
Carlos Herculano Lopes



Desde sua elogiada estreia na literatura em 1980, com O dia dos prodígios, romance que remete à Revolução dos Cravos em Portugal, tema retomado em Os memoráveis, lançado este ano, que Lídia Jorge vem se firmando como uma das escritoras portuguesas mais celebradas. Traduzida para diversas línguas e detentora de prêmios importantes, a romancista esteve no Brasil para participar do Fórum das Letras, em Ouro Preto, e também para divulgar seus dois mais recentes livros –
Lídia Jorge, antologia de contos e o romance Combateremos à sombra, ambos lançados pela Leya.

No romance, a escritora, de 68 anos, conta a história do psicanalista Osvaldo Campos. Às voltas com uma separação difícil e envolvido com a escrita de um ensaio, Quanto pesa uma alma, no qual reúne fragmentos de revelações de clientes, ele é procurado por um paciente que lhe traz uma mensagem que talvez, pelo seu teor, ele nunca conseguirá decifrar.

 Na mesma noite, várias coisas irão acontecer na vida de Oswaldo Campos, num emaranhado de fatos que levarão o leitor a se envolver de vez com a história. De acordo com a poeta Suzana Vargas, que participou com Lídia Jorge de mesa-redonda no Fórum das Letras, em Combateremos a sombra ela se supera, “aos oferecer uma história densa e maravilhosa.”

Autora de A costa dos murmúrios, de 1988, considerado um dos textos mais reveladores sobre a guerra colonial portuguesa (o livro foi adaptado para o cinema por Margarida Cardoso), Lídia Jorge, em entrevista ao Pensar, fala sobre sua infância passada no Algarves, no Sul de Portugal, do atual momento das letras
em seu país e de sua relação com a literatura brasileira.

Autora respeitada nos círculos literários, traduzida para vários idiomas e ainda em plena produção. Conte como foi o início de sua trajetória na literatura.

Comecei a escrever muito cedo, quando ainda era menina. Já naquela época lia muito, pensava muito, pois não tinha irmãos, nem amigos, nem vizinhos. A vida era muito solitária no Algarves daqueles tempos. Escrevia então para superar essa solidão e também para dialogar com pessoas imaginárias, já que existiam muito poucas presentes. A gente vivia no campo. Portugal, naquela época, ainda era um país bastante atrasado, agrícola, não existia rádio nem televisão, quase nada que nos remete ao mundo de hoje. Só tínhamos mesmo era a natureza ao redor.

Quando surgiu para você o vislumbre de uma possível publicação?

Foi continuando a escrever, escrever muito, e aos 18 anos, com toda a inquietação da juventude, já queria publicar meu primeiro livro. Isso só ocorreu por volta dos 30 anos, quanto tive certeza de que podia fazê-lo. Por sorte, tive um professor que me disse: “Não queira aprender em público. Primeiro, aprenda sozinha e só apareça quando estiver completa”. Esse conselho sábio me ajudou a ter paciência para esperar, escrever e reescrever meu primeiro livro, até senti-lo realmente completo. Foi em 1980, quando lancei O dia dos prodígios, que em breve terá nova edição no Brasil.

O conselho foi bom: logo na estreia, com O dia dos prodígios, você já se consagrou. E como foi se dando a evolução da sua literatura?

Diria que fui muito fiel e muito infiel à minha literatura: fiel porque meus primeiros livros têm uma âncora muito forte no Portugal rural e arcaico, mágico, e com uma linguagem poética muito relacionada ao fundo tradicional do meu país. Um Portugal religioso, dado às liturgias, muito tradicional e conservador. Mas com o tempo mudei e fui me tornando infiel, pois já tinha uma experiência urbana e de mundo, principalmente da África, onde vivi em Angola e Moçambique durante as guerras coloniais, ocorridas entre os anos de 1960 e 1970. Meu primeiro marido era oficial da Força Aérea e fomos para lá.

O que ficou de mais marcante da experiência africana?

A minha experiência na África, entre 1970 e 1974, foi definitiva. Foi quando realmente me tornei escritora, pois vi que finalmente tinha encontrado uma matéria inquietante sobre a qual escrever. Foi dessa experiência que veio A costa dos murmúrios, um dos meus livros mais conhecidos até hoje. Foi a partir daquela vivência africana, que ainda me inquieta, que resolvi me tornar uma espécie de cronista do meu tempo. Desde então, o que une todos os meus livros é uma espécie de fidelidade ao correr do tempo. Tanto que meu último romance, Os memoráveis, lançado no ano passado, dialoga com o primeiro, O dia dos prodígios, mas com uma visão voltadas para os jovens de hoje. É uma revisitação ao início da democracia portuguesa, com a Revolução dos Cravos, de 1974.

Quais são os reflexos, hoje, daqueles acontecimentos?

Nesse passar de tempo ocorreram mudanças extraordinárias em Portugal. Quem conheceu o país de antes de 1974 e volta lá agora encontrará outro país, com abertura política, liberdade, democracia e, principalmente, a certeza de que pertencemos à Europa, à Comunidade Europeia, o que antes não ocorria. De certa forma, nos isolávamos do resto do continente.

E na literatura portuguesa essas mudanças também se fizeram sentir?

A literatura feita em Portugal hoje é uma literatura que, apesar de continuar sendo portuguesa, segue muito as inquietações do momento. Diria que existem dois tipos de escritores atualmente em Portugal: os mais densos, cujos maiores expoentes sem dúvida são José Saramago, Agostina Bessa Luís, Mário de Carvalho, Hélia Corrêa; outros mais novos, como Gonçalo Tavares, Walter Hugo Mãe, Inês Pedrosa, Patricia Reis e alguns mais, que fazem uma literatura mais fácil, voltada para o mercado e o sucesso fácil. No domínio dos mais densos, os grandes temas explorados são, a meu ver, a relação do homem português, europeu com os outros povos do mundo. Em Portugal de hoje se faz uma literatura mais aberta, mais dirigida para temas que são, em resumo, voltados a todos os seres humanos.

Como tem sido sua relação com a literatura brasileira?

Tanto eu como outros escritores portugueses meus amigos gostamos muito da literatura brasileira. Na faculdade, já aos 18 anos, estudei muito Jorge Amado, Erico Verissimo, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, João Cabral de Mello Neto. Li com muito interesse os seus livros. Da minha geração, gosto muito de Antonio Torres, Ignácio de Loyola Brandão, das queridas amigas Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles, e também de Oswaldo França Júnior e Moacyr Scliar, cujas mortes senti muito. Já dos novos, acompanho e gosto de ler Adriana Lisboa e Luis Ruffato, aos quais tenho mais acesso.


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