Mestra Izabel

Legado da artista popular que deu alma ao barro do Vale do Jequitinhonha precisa ser melhor conhecido e valorizado por instituições e pesquisadores

por 08/11/2014 00:13
Lucas Van de Beuque/Divulgação
Lucas Van de Beuque/Divulgação (foto: Lucas Van de Beuque/Divulgação)
João Paulo

Nascida em 1924 em Itinga, no Vale do Jequitinhonha, dona Izabel Mendes da Cunha descansou dos tormentos da existência na semana passada. Tinha 90 anos e deixou um patrimônio de realização artística que beira o sublime. A sensação, frente ao trabalho da artista, é de que há uma dívida: parece que ainda não nos tornamos plenamente capazes de merecê-la. A poucos artistas é dado o dom de criar; a pouquíssimos o condão de criar vidas. Izabel cumpriu, com sua dimensão humana, o desígnio de insuflar vida no barro do chão.

Sua arte, que merece ser destacada pela beleza, apuro técnico, composição, inventividade, lirismo e expressividade, ganha ainda significação por ter criado uma verdadeira corporação de ofício em seu entorno. Além de ter iluminado o mundo com suas peças, partilhou seu engenho para que as pessoas próximas a ela também tivessem suas vidas alteradas pela força da arte. Como autêntica mestra, ensinou pelo exemplo.

A vida e obra de Izabel trazem alguns desafios para o universo da arte. O primeiro deles é conceitual. Temos o costume, profundamente arrogante e etnocêntrico, de classificar a arte em erudita e popular. Isso quando não vamos ainda mais adiante e pespegamos logo um “primitivo” ao trabalho dos artistas pobres e representantes do povo.

O preconceito se assenhorou da história da arte de modo, ainda, a separar a arte considerada verdadeira da expressão dita popular ou artesanato. A classificação não era heurística, mas excludente; o critério não se fundava na estética, mas na sociologia. São, até hoje, poucos os trabalhos que fazem confluir os dois universos para o mesmo juízo artístico e, quando ocorre, quase sempre é resultado da emergência de uma criatividade insuspeita, como é o caso de Ulisses Pereira Chaves, Arthur Bispo do Rosário ou mesmo dona Izabel.

A recepção da cultura popular (com a ampla polissemia que o termo “povo” inscreve na história da arte) é sempre difícil. A primeira reação tem sido a tendência a congelar a criatividade no tempo e no espaço, mais como um caso antropológico que propriamente artístico. A arte popular é sempre obra do passado e de um enclave geográfico periférico. A segunda batalha a ser vencida é a superação do contexto genérico para o reconhecimento do sujeito criador. Arte popular é sempre plural; arte considerada pelo sistema é emergência de uma individualidade distinta.

Por isso, chega a impressionar que alguns artistas vindos do povo consigam vencer essa barreira e afirmar seu trabalho como fruto consciente de suas ideias e gestos, embora impregnado de sua realidade social – como, aliás, toda criação artística. É sempre mais fácil resumir tudo em categorias sociais, compreensivas e compassivas. Ao artista, o mercado de arte; ao artista popular, a condescendência.

Outro elemento a ser considerado nessa dicotomia popular-erudito é o franco deslizamento de um território sobre o outro. Os historiadores da arte sempre foram pródigos em reconhecer a base popular da arte culta. No caso da música, por exemplo, todos parecem ter o maior orgulho em identificar nas obras de Bach, Chopin e Villa-Lobos elementos vindos do folclore alemão, polonês ou brasileiro, que ganham roupagem com a linguagem técnica da música erudita.

No caso das artes visuais, o saber e a expressividade das camadas mais pobres parecem não carregar o mesmo potencial, vistos, no máximo, como “quase arte”. Foi preciso que Mário de Andrade, à frente dos modernistas, propusesse uma “descoberta do Brasil”, aumentando a partir de então o diálogo entre os estratos que eram dados como imiscíveis, como a água e o azeite.

Mais do que apenas identificar o necessário movimento de mão dupla entre o “alto” e “baixo”, Mário de Andrade defendeu o “direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência crítica nacional”.

E já que estamos falando em articulações, não é um acaso que o ano de 1922 seja ao mesmo tempo o da Semana de Arte Moderna e o da fundação do Partido Comunista do Brasil. Independentemente da ideologia, nos dois registros, o povo começa a ser considerado sujeito de seu destino.

Outros estudiosos da arte popular têm dado continuidade ao programa do modernismo, com destaque para o incansável trabalho de Lélia Coelho Frota, que deixou entre suas obras dois marcos de estudos no setor, Mitopoética de nove artistas brasileiros (1975) e o imprescindível Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro – Século 20 (2005). Seu exemplo ainda está para ser seguido.
 
Chão do Vale Dona Izabel Mendes da Cunha embaralha essas parcas certezas e põe em cena uma verdade que exige nova orientação dos estudos estéticos, do mercado de arte e da própria noção de identidade nacional: é uma das maiores artistas brasileiras do século 20.

Suas obras mais conhecidas são as bonecas em cerâmica, que hoje se tornaram um padrão para vários artistas populares, entre eles os 38 que integram a Associação dos Artesãos de Santana do Araçuaí, onde morava Izabel. Nascidas da cerâmica utilitária (moringas), em duas peças (corpo e cabeça), as bonecas logo se tornam blocos únicos, a merecer sem outros complementos o nome de esculturas.

Filha de paneleira, e por isso conhecedora da matéria-prima desde a infância, antes de chegar às figuras humanas dona Izabel seguiu as indicações que via à sua volta, produzindo animais, presépios e cavaleiros. Fez ainda peças decorativas para a casa e para o serviço doméstico. Viúva em 1978 – não voltaria a se casar –, passou a se dedicar exclusivamente às figuras humanas, trabalho com o qual sustentou a família.

As bonecas parecem carregar alguma motivação da infância pobre e sem brinquedos. No entanto, vão se desdobrar em outros modelos de figura humana, como noivas, mulheres amamentando, cavaleiros e homens com vários tipos de trajes. As peças, com o tempo e a segurança da escultora, ganharam em dimensão, variedade de barro e diversidade de pintura. Passam a incorporar elementos urbanos, sempre com fisionomias peculiares que fogem ao padrão da reprodutibilidade típica do artesanato. A marca de Izabel está presente em suas criações.

Basta olhar com atenção uma escultura de Izabel: suas mulheres são graves, vivem um momento decisivo, parecem estar pensando em algo importante e carregam motivos na alma que comunicam sem precisar de palavras. Há uma empatia humana que é patrimônio da grande arte. Como nos personagens de Guimarães Rosa: a geografia se torna metafísica. O barro é a carne sem mediações.

A percepção de uma “assinatura” é duplamente significativa. Em primeiro lugar pela expressão de uma identidade estética, madura e complexa, que caracteriza a inteligência do trabalho da artista. Em seguida, pelo fato de servir como exemplo para os outros criadores que labutavam em torno dela, como o genro João Pereira, o filho Amadeu Mendes, as filhas Madalena e Glória e a neta Andréa Pereira de Andrade, que percebem o sentido necessário da personalidade no fazer artístico. Assim, nas obras dos seguidores de Izabel vão surgindo outros olhares, elementos decorativos, palheta de cores e até certa sensualidade.

Mesmo que se fale hoje em “escola” de dona Izabel, mais que um padrão ou modelo, o trabalho e a postura da artista constituem exemplo ético e estético raro. Ao congregar em torno de si uma corporação familiar e de vizinhos, com identidade e pluralidade estética, a escultora deu ainda impulso para a criação de uma alternativa de sobrevivência na região, gerando um sistema de produção viável, embora sempre cercado pelo interesse do mercado de arte. Ela sempre soube que era preciso fazer a roda do mundo girar, era atenta às negociações e não se seduzia fácil com elogios.

Já no auge de sua maturidade, dona Izabel passou a ganhar reconhecimento, com a distribuição de seus trabalhos em todo o Brasil e em alguns países atentos à arte de alto nível, a preços minimamente justos. A artista recebeu ainda comendas, prêmio da Unesco e, em 2005, a Ordem do Mérito Cultural do governo brasileiro, mas sempre identificando-a como expressão do artesanato brasileiro e não da arte brasileira.

Continuou produzindo até o fim da vida em seu ateliê, nos fundos de casa, em Santana do Araçuaí, com seu forno, matéria-prima retirada dos barreiros da região, pigmentos e instrumentos singelos de modelagem que a acompanharam por toda a vida.

Depois de tanto empenho em produzir o belo para quem nem sequer conhecia, sustentar a família com dignidade e ensinar generosamente quem estava à volta, suas mãos finalmente descansaram.

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