Do tamanho da vida

Graça infinita, obra-prima de David Foster Wallace, chega ao Brasil no fim do mês com tradução de Caetano Galindo. Autor, que se matou aos 46 anos, é considerado renovador da literatura americana

por 08/11/2014 00:13
Obviousmag/Reprodução de internet
Obviousmag/Reprodução de internet (foto: Obviousmag/Reprodução de internet)
Daniel Camargos



Graça infinita, livro do escritor norte-americano David Foster Wallace (1962-2008), um dos mais aclamados pela crítica desde o lançamento, em 1996, com o título original de Infinite jest, começa a ser vendido nas livrarias brasileiras no fim deste mês. A obra já foi comparada à Ulysses, do irlandês James Joyce, e também chamada de Arco-íris da gravidade da geração X, uma referência ao clássico de Thomas Pynchon, de 1973. As comparações são uma tentativa de explicar um dos textos mais impactantes surgidos nos últimos 20 anos, que devido à complexidade e profundidade recebeu um ar de hype, daquelas obras que muitos citam, mas poucos leem.

Quem lê DFW – como o escritor é conhecido pelos fãs – tende a se apegar à narrativa e à visão de mundo misantropa dele, que se matou em 2008, aos 46 anos, depois de conviver por mais de duas décadas com uma crônica depressão e dependência do medicamento Nardil. No Brasil, já foram traduzidos dois livros de DFW: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (2012), uma coletânea de ensaios e reportagens; e Breves entrevistas com homens hediondos (2005), com 23 contos, ambos pela Editora Companhia das Letras.

Graça infinita é um romance de mais de mil páginas e está em pré-venda nos sites das livrarias on-line. O preço varia de R$ 83,90 a R$ 111,90. A tradução do calhamaço foi feita pelo professor de linguística histórica na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor em linguística pela USP Caetano Galindo, que é também o tradutor da última e elogiada edição de Ulysses (Penguin Companhia).

Na análise de Galindo, a comparação de qualquer livro com o clássico de James Joyce é “descabida”. “O romance de Joyce está (merecidamente) num lugar meio intocável. Agora, só o fato de que as pessoas se sintam tentadas a fazer essa comparação, no que se refere ao Graça infinita, já diz muito sobre o livro. Primeiro tem essa coisa de que os dois livros têm fama de ser mais citados que lidos. Em parte por causa dos fatores de tamanho e dificuldade mesmo”, compara o tradutor.

Galindo ressalta que o livro de Wallace é maior do que Ulysses – próximo do dobro do tamanho. Porém, avalia que é menos complexo. “Depois que você pega a manha do estilão de narração, o texto flui bem mais livre”, pontua. A semelhança entre os dois se dá, na análise de Galindo, na pretensão de ambos.

“É a ideia de tentar abarcar o mundo num livro só, de decidir dar conta de uma fatia imensa da experiência humana num dado momento e num dado local. Mas, acima de tudo, acho que os dois livros se tocam, por assim dizer, no que se refere a essa profunda compaixão, a uma visão de mundo que não nega, claro, a dor e a mesquinhez, mas que revela acima de tudo um lado compassivo, humanístico mesmo”, disserta.

O livro se passa em um país do futuro, resultado da unificação de EUA, Canadá e México, e o enredo se desenvolve em uma academia de tênis e em uma clínica de reabilitação, assuntos caros a DFW. O vício e a recuperação, as relações familiares, a lógica do entretenimento, cinema e até as questões separatistas de Quebec são esmiuçadas pelo estilo obstinado do escritor, que se vale de quase 400 notas de rodapé, sendo que algumas chegam a ter diálogos e páginas e páginas de extensão.

O autor da biografia Every love story is a ghost history: A life of a David Foster Wallace, D. T. Max, em entrevista para a revista norte-americana Saloon, defende que a maior influência de DFW é Fiódor Dostoiévski, mas que a sombra do russo não tem reflexo no estilo do norte-americano.
O crítico James Wood escreveu que o livro “busca a vitalidade a todo custo”. O escritor Jonathan Franzen, de quem DFW era amigo e discutia aspectos da literatura, escreveu assim sobre o livro: “Você pode sentir o cheiro do ozônio da precisão crepitante das estruturas da sentença”. Foi Franzen, aliás, quem, atendendo a um pedido do amigo, levou as cinzas de DFW para serem jogadas na ilha chilena de Masafuera. Franzen publicou, em abril de 2011, um ensaio na revista New Yorker narrando a experiência.

“O curioso sobre a ficção de David é como seus leitores mais dedicados se reconhecem e se sentem confortáveis e amados quando o estão lendo. À medida que cada um de nós está preso em sua própria ilha existencial – acho que é quase correto dizer que seus leitores mais suscetíveis são aqueles familiarizados com o isolamento espiritual e social, com os efeitos do vício ou compulsão ou depressão –, nós somos apreendidos com gratidão a cada nova expedição naquela ilha distante que era David”, escreveu Franzen.

Esse acolhimento provocado pela leitura de DFW pode ser entendido como uma compreensão do autor dos mecanismos da literatura de autoajuda. Para Galindo, Graça infinita está “a quilômetros” de ter algum parentesco com autoajuda. “Até porque, o livro dá trabalho demais para o leitor e os eventuais efeitos que ele pode vir a ter positivamente sobre a tua vida (e não se iluda, a gente ainda, e sempre, lê também por isso, qualquer romance) vão depender de um grau de ‘atividade’ que é claro que nada tem a ver com a literatura mastigada de conselhos”, pondera o tradutor.

Porém, Galindo entende que a noção de autoajuda e de autoanálise é um fator forte da cultura americana e, por isso, é assunto de DFW. Outra questão apontada pelo tradutor é que DFW se questionava por que apenas os autores de autoajuda estivessem preocupados com certos problemas, dores e dificuldades. “Ele tentou reconquistar esse terreno para o romance. Através dos meios e dos procedimentos normais do romance. Sem panfletarismo, sem receitas, sem conselhos, mas abordando e encenando as questões”, entende Galindo.

Supense

Galindo destaca que quando Wallace publicou Graça infinita ele tinha 34 anos e, apesar de ser novo, não era um escritor desconhecido. “A editora original, percebendo o potencial do livro, embarcou numa grande campanha de suspense para criar expectativa. Quando o livro apareceu, já estava no caminho de virar mito”, lembra o tradutor.

O suspense se justificou pelo que a obra entregou. “Ela é de certa forma o grande passo da literatura americana para fazer de vez as pazes entre o legado do pós-modernismo e algumas preocupações novas, menos ironicamente pop, mais dedicadas a um certo tipo de sensibilidade e de sinceridade (o Wallace acabou sendo diretamente associado a uma espécie de ataque à ironia). Porque o fato é que ninguém tinha escrito um livro assim. Com aquela megalomania, aquela candura e aquele talento verbal”, avalia Galindo.

O tradutor também vê na obra a possibilidade de a literatura em língua inglesa ter encontrado uma nova voz: “Um estilo de narração (onívoro, veloz, tortuoso, engraçado, tocante) que representaria uma espécie de resumo da sensação de estar vivo e imerso no mar de informação de fins do século 20”, analisa.

Dois em um

Em Portugal, a tradução de Infinite jest recebeu o título de Piada infinita. O trabalho foi feito a quatro mãos por Salvato Telles de Menezes e seu filho, Vasco. Para conseguir manusear o livro enquanto fazia a tradução, Vasco optou por parti-lo ao meio.

Graça infinita

. De David Foster Wallace, tradução de Caetano Galindo
. Editora Companhia das Letras, 1.144 páginas, R$ 111,90
. Previsão de lançamento, 27/11

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