Receita de Brasil

Sociólogo investiga as bases da identidade brasileira a partir da gastronomia de várias regiões

por 01/11/2014 00:13
Jair Amaral/EM/D.A Press
None (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Eduardo Tristão Girão

"O interesse de mexer nas categorias da nossa culinária é claramente da indústria turística, não um interesse ligado ao conhecimento"

"Há uma busca por uma cozinha agradável ao paladar moderno e uma busca por ingredientes que sejam tipicamente brasileiros"

"Os tropeiros precisavam de uma comida seca, enquanto no litoral se desenvolveu uma cozinha de potaria, com as moquecas"




Ele implica com o leite condensado no pudim e com a paixão popular pela Nutella, não se conforma com os sorvetes “artesanais” feitos com bases industriais, se indigna com o sumiço do cuscuz paulista, desmonta a história da criação da feijoada que todos estão carecas de repetir, prevê a “tucanização” dos food trucks em São Paulo e é leitor crítico de muito do que se escreve sobre alimentação no país. Não que seja difícil encantar Carlos Alberto Dória à mesa, mas desagradá-lo é mais fácil. Observador dos mais atentos da cena gastronômica brasileira, seus livros, como o recém-lançado Formação da culinária brasileira (Três Estrelas), o colocam como cabeça imprescindível nessa área. Em entrevista ao Pensar, ele fala sobre o potencial dos ingredientes brasileiros e da cultura pouco profissional em torno da gastronomia no Brasil. “A culinária no Brasil assumiu a feição de algo a ser celebrado, fofinho, panelinha”, alfineta.

Como foi seu processo de trabalho para pesquisar e escrever Formação da culinária brasileira?

Procuro trabalhar pensando um conjunto de artigos e ensaios. Depois reúno num livro. Para este, reescrevi o ensaio que a Publifolha lançou. Ele cresceu e procurei desenvolver nele tópicos que estavam mais herméticos. Por exemplo, no primeiro causou certa espécie que os escravos não produziram uma culinária. Isso é um negócio muito mais conceitual do que qualquer coisa, pois parte da premissa de que para criar culinária precisa-se de um ambiente de liberdade e escolhas de ingrediente, processos de trabalho. Mas chamo a atenção de que há o desenvolvimento de uma culinária de rua em Salvador, feita por negros livres, num sincretismo interessante, com uso indistinto de farinhas de milho e de trigo, associadas ao índio e o branco.

Que outras discussões você trouxe para o livro?

Também procurei discutir a formação da culinária nacional. Quando começa a demanda por uma culinária brasileira. Acho que na mesma época que se demanda uma música nacional, uma pintura nacional. Isso está associado à formação da nação. A discussão de formação da nação na Europa começa no fim do século 19, com a unificação tardia de Itália, da Alemanha. Isso vem bater tardiamente nos países que são ex-colônias. No Brasil, o que atrasou essa discussão foi a escravidão, pois nação é ajuntamento de homens livres. O que se seguiu aqui foi uma discussão sobre raça, dividindo autores até 1920. Até então, tínhamos uma culinária de negro, de bugre e de branco. A partir daí, começa-se a se falar de culinária brasileira, para a qual convergem preparações típicas desses recortes étnicos. Aprofundo discussão sobre regionalismo, que é posterior ao nacionalismo e está ligado a competição das elites regionais, com a afirmação de tipicidades pernambucana e mineira, por exemplo. É algo que vai até os anos 1970 e contribuiu para a formação da culinária nacional. Por outro lado, desenvolvo ideia de que é possível situar e classificar nossa culinária sem ter de recorrer a adjetivos como nacional ou regional. A relação da quantidade de farinha de milho ou mandioca e água, por exemplo, vai do chibé a paçoca, que quase não tem água. Essa oposição é também entre litoral e sertão. Os tropeiros precisavam de uma comida seca, enquanto no litoral se desenvolveu uma cozinha de potaria, com as moquecas.

Como você posicionaria esse livro dentro de sua reflexão?

Nesse livro me aprofundo na formação e caracterização da culinária nacional, mas ele mais levanta problemas do que apresenta soluções. O modelo de produção intelectual em relação a culinária ainda é frágil no Brasil, sem universidade engajadas nisso e quando há, está restrito a história. Temos que revolver conceitos e encarar a nossa cozinha sem ser pelas óticas deixadas por Gilberto Freyre e Câmara Cascudo. Existem problemas novos para serem levantados. De técnica, caracterização dos ingredientes, processos sociais ligados à isso, enfim. Não temos um levantamento sistemático da culinária como na França, que serve de base para intelectuais e cozinheiros. Eu, por exemplo, tenho muita dificuldade para conseguir dados. No Brasil, o interesse de mexer nessas categorias da nossa culinária é claramente da indústria turística, não um interesse ligado ao conhecimento e entendimento da nossa culinária. Isso se reflete nas faculdades, onde se tem culinária do nordeste 1, 2, 3, 4, por exemplo. Vira um conjunto de pratos, só isso. O que é ensinado? Como esses pratos foram organizados e qual princípio estruturante deles não se sabe.

Qual é seu próximo livro?

Estou desenvolvendo livro sem data para lançar, sobre o milho, com a Ana Rita Suassuna. Temos uma visão romântica do índio como aquele que contribui com a mandioca, como se todos do Brasil só comessem isso. Mostraremos que o milho também está presente muito fortemente na culinária indígena. Entretanto, os cronistas leram nossa culinária na costa, onde há mandioca, não milho. Milho aparece no interior, sul e sudeste, vindo pelos guaranis, que tiverem isso pelos índios da Cordilheira dos Andes. Existe uma culinária do milho que é muito importante para a formação da culinária caipira, ou seja, do Vale do Paraíba, Rio Doce, entrando pela Zona da Mata em Minas, se formando nos séculos 17 e 18. As fronteiras entre o milho e mandioca também são interessantes, há misturas e comunicação entre a costa e o planalto. Vamos reposicionar o milho na culinária brasileira. Há um receituário rico de milho no Brasil e que nem sempre se tem atenção. Um exemplo é a fubá, que não é o fubá, mas a farinha de milho torrado, como se você moesse o piruá da pipoca. Conheci em Garanhuns e é difícil de encontrar.

É possível falar em cozinha brasileira moderna ao nos referirmos ao trabalho feito hoje no país?

Hoje há um esforço em fazer uma nova cozinha brasileira, com um reencanto dela. Passa por uma crítica prática dos cozinheiros ao que antes existia, eliminando excesso de gordura, atenuando sabores, dando apresentação mais bonita e incorporando técnicas internacionais. Ícones da nossa cozinha numa leitura moderna, mais leve, que qualquer estrangeiro comeria num restaurante aqui ou na Europa. Há uma busca por uma cozinha agradável ao paladar moderno e uma busca por ingredientes que sejam tipicamente brasileiros, digamos assim. Nativos em primeiro lugar, como o pequi. Em São Paulo, chefs já começaram a pesquisar sobre a castanha de pequi, associada ao chocolate, à panificação e em pratos salgados.

Você enxerga potencial para quais outros ingredientes brasileiros?

Além da castanha de pequi, tem o chocolate de jatobá, que talvez seja menos oleoso e é muito interesasnte. As pessoas mudam de atitude diante dos ingredientes e vão descobrindo coisas. Isso faz parte do esforço de renovação da cozinha brasileira. Não por acaso, fizeram sucesso as reuniões e o jantar baseado nas plantas alimentícias não convencionais. É a recuperação de um conjunto de plantas que tiveram uso tradicional e perderam peso ou ainda não tiveram uso e que podem ser usadas por terem valor nutricional e de sabor. O cumaru, por exemplo, é usado há muito tempo no mercado internacional, os franceses plantaram nas Ilhas Reunião, o Toddy tinha em sua fórmula e aqui na Amazônia ele não é usado para fins culinários, mas para fins medicinais e para banhos, o que o afasta da cozinha. O mesmo acontece com o puxuri, semente com aroma entre noz-moscada e anis-estrelado também usada em banhos e que no século 18 os ingleses apreciavam e levavam para usar em ponchos. A renovação culinária passa por pontuar e valorizar essas coisas, além da difusão das técnicas modernas. Também falta que essa cozinha seja libertada da camisa de força de classe social, pois é prisioneira de público de alta renda, burguês. Falta ser popularizada, disseminada. Acredito que tudo o que fazem hoje chefs como Alex Atala, Helena Rizzo e Felipe Rameh servirá de modelo para uma próxima rodada, com restaurantes mais simples. Quando isso transbordar dos limites de classe, teremos um reecantamento.

Você mantém um blog, E-Boca Livre, desde 2009. Como tem sido essa experiência?

Ele me serve de lugar para registrar reflexões rápidas e cotidianas, um desangustiador. Às vezes também esboço algo que vai virar um capítulo de livro. Aí, aproveito para medir a sensibilidade das pessoas em relação ao que estou propondo. É uma antena minha nas redes sociais. Estudantes e professores de gastronomia, além de cozinheiros, acessam bastante. Sei que se eu fizesse um site com receitas, seria muito mais lido, mas isso não me interessa. Quem resolve isso muito bem é a Neide Rigo, do blog Come-se, que consegue dosar considerações ténicas, históricas e receitas, explorano fronteiras e novidades. Fico impressionado com a inabilitação geral para a crítica. Muitas vezes eu arrumo encrenca. Quando critiquei a mudança de direção da Editora Senac São Paulo, fui expulso de lá. Romperam todos os contratos comigo e não há mais nenhum livro da editora meu disponível no mercado. Mesmo assim, eu conseguirei publicá-los por outras editoras. Foi um negócio chato. Tudo o que se aproxima de uma visão crítica ou do aspecto contraditório das instituições sempre cria problema. A culinária no Brasil assumiu a feição de algo a ser celebrado, fofinho, panelinha. O New York Times nunca foi assim, por exemplo, e a transparência que ele deu aos problemas de intoxicação causados pelo salmão chileno comparado ao silêncio da imprensa brasileira é chocante. Mostra a diferença de respeito em relação ao consumidor da indústria alimentar.

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