A cultura que o Brasil merece

por 01/11/2014 00:13
Cristina Horta/EM/D.A Press
Cristina Horta/EM/D.A Press (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
João Paulo


O resultado eleitoral, com a vitória de Dilma Rousseff, já inaugurou sua posteridade. Como é próprio das democracias maduras, estamos em ritmo de novo governo, que toma posse em 1º de janeiro de 2015. A campanha eleitoral, concentrada em temas econômicos e em políticas públicas clássicas como saúde e educação, além do excessivo espaço dado ao marketing construtivo e desconstrutivo, deixou de lado alguns temas fundamentais para o país, entre eles a cultura. E olha que, como nunca, estamos precisando de cultura. É só acompanhar os comentários racistas e odiosos disparados por perdedores rancorosos contra o Nordeste brasileiro.

Os projetos para a cultura no Brasil quase sempre se ressentiram do parco investimento público no setor. Em razão disso, sempre que se coloca o tema em pauta, parece que o único problema é dinheiro, o que gerou uma tendência a debater sempre fontes de financiamento em primeiro lugar. O resultado foi a privatização excessiva, por meio das leis de incentivo que viciaram o setor, extirparam a participação popular, entronizaram os valores do mercado e concentraram as ações nas grandes cidades e na Região Sudeste.

As leis de incentivo, em todos os níveis, foram sendo valorizadas como fonte por excelência de financiamento do setor, o que repercutiu na redução dos orçamentos e na transferência para as empresas das decisões atinentes à área. Assim, até mesmo o setor público passou a ser financiado por mecanismos de mercado, gerando parcerias muitas vezes viciadas, com a retirada do interesse público do coração das decisões. Além disso, as próprias empresas, por meio de institutos e organizações internas, passaram a utilizar mecanismos de renúncia fiscal para levar adiante projetos que atendem mais suas marcas e interesses de ostentação do que a cultura propriamente dita.

A iniciativa privada, sob a falsa alegação de que paga a conta (na verdade, trata-se apenas do imposto devido que ela não recolhe), passou a determinar os rumos da cultura brasileira. A montagem de tal sistema, que deseducou a sociedade e tirou do público o poder de escolha, gerou uma casta de atravessadores, com ação prevista em lei, que tingem de “laranja” todo o processo. O cenário, visto de fora, é uma vitrine de empresas que dão seus nomes a teatros, festivais e eventos pagos com o dinheiro do povo, mas apresentados como exemplos de mecenato.

O que se pode esperar da nova política cultural para o país e para o estado? Em primeiro lugar, que seja pública em suas prioridades, definições, gestão, destinação, fruição e controle. Que seja voltada para a gama de interesses que cabe efetivamente à cultura, e não ao mercado: inovação, crítica, descentralização, experimentação de linguagens e participação popular. Que atinja a maioria do povo e não se concentre em segmentos e locais já aquinhoados com recursos e equipamentos culturais. Que contribua para a constituição da cidadania a partir de instrumentos próprios da cultura.

Avaliação O exame detido das iniciativas que vêm sendo levadas a cabo pelos governos federal e estadual é um passo importante para começar o debate em torno das novas políticas culturais. No caso de Minas, o que se acompanhou nos últimos anos foi uma concepção de cultura monolítica, com pouco potencial de diálogo com as forças criativas, fundamentada nas leis de incentivo e com concentração na capital e, nessa, nas regiões já privilegiadas, como o Circuito Cultural da Praça da Liberdade. Além disso, em vez de aumentar recursos ordinários, o estado se retirou do financiamento para buscar parcerias com o mercado. Foi como fez funcionar, por exemplo, o Palácio das Artes e, por meio de um instituto, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

A repercussão, é claro, criou cisão entre artistas e produtores: de um lado. o grupo que se nutriu do expediente do incentivo em razão de bom trânsito com o governo; de outro, o isolamento dos segmentos mais críticos e experimentais, sem capital social de pressão. O setor cultural, entretanto, saiu fortalecido sobretudo pela capacidade de resistência e mobilização. Um bom exemplo foram as ações dos coletivos e ocupações criativas, como o Espaço Comum Luiz Estrela, que deu nova utilização a equipamento público degradado e em estado de abandono. A nova política para o estado, além de ampliar o foco de ação – inclusive com a incorporação da Rede Minas e Rádio Inconfidência ao setor cultural –, deverá propor mais recursos diretos, maior participação nas decisões e descentralização das ações.

No caso do governo federal, a avaliação precisa dar conta dos vários momentos da política pública para o setor. Há experiências como os pontos de cultura e as produções de baixo orçamento que merecem ser restauradas em sua inspiração original. Além disso, programas como o Vale Cultura (ainda incipiente) precisam ser debatidos em sua complexa formulação, que, por um lado, dá poder de escolha ao cidadão e, por outro, corre o risco de reduzir cultura a consumo. O debate está aberto.

Algumas medidas, como o decreto do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que permite declarar como de interesse público obras de coleções particulares, mexeu num vespeiro histórico. Os colecionadores não gostam de declarar seus ganhos, pagar impostos por transações, dirigir-se por valores efetivamente culturais. Trata-se de um enclave que sempre se manteve no topo, à margem da lei, mas ambicioso quando se trata de subvenção. A política pública para museus e coleções de arte é um imperativo da lei, da economia, da moral e da civilização.

Por fim, é preciso avançar na proteção da cultura brasileira num cenário de alta competitividade, com formulações de políticas de cota de tela e outras que ajudem a formar público, escoar a inteligência e criatividade e fomentar uma indústria rica e independente. Foi o que os países que hoje dominam o setor sempre fizeram, ainda que encham a boca para falar em mercado livre.

Para todas essas medidas, o primeiro passo é a educação. Não apenas a educação escolar, mas aquela dirigida à sensibilidade que anda faltando no país. O Nordeste, como rica fonte da brasilidade ao longo da história, tem muito a ensinar.

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