Dignidade já

Livros lançados pelo catador de lixo Tião Santos e pelo médico Marcio Maranhão denunciam o descaso com políticas públicas nas áreas de saneamento e saúde

por 25/10/2014 00:13
Fábio Cortez/D.A Press
Fábio Cortez/D.A Press (foto: Fábio Cortez/D.A Press)
Ângela Faria


Tião e Marcio comeram o pão que o Brasil amassou. O primeiro catou lixo por 15 anos no aterro de Jardim Gramacho, na Baixada Fluminense. O outro, cirurgião-geral e torácico, dedicou-se de 1996 a 2009 às vítimas do caos da saúde pública no Rio de Janeiro. Sebastião Carlos dos Santos – protagonista do documentário que disputou o Oscar em 2011 – e seus companheiros fizeram do maior lixão da América Latina o símbolo de um Brasil reciclado, capaz de romper a fronteira entre miséria e cidadania. Por anos a fio, Marcio Maranhão lutou para salvar vidas em ambulâncias, corredores, quartos e mesas de operação – às vezes, sem cateter ou pinça. Batalhou em dois fronts: da guerra do tráfico e da incompetência política para fazer realmente valer o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse doutor jamais tratou gente como lixo.

Os livros Sob pressão – A rotina de um médico brasileiro (Editora Foz) e Tião – Do lixão ao Oscar (Leya) não se limitam a descrever a saga do doutor de classe média, que, vencido, exonerou-se do serviço público, e a odisseia do “excluído” que articulou a Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, pisou no tapete vermelho de Hollywood e se dedica a difundir projetos de reciclagem. As duas autobiografias, a princípio, parecem relatar um fracasso e uma vitória. Porém, é rasa a leitura egotrip das experiências do cirurgião e do lixeiro. Ambas revelam de forma contundente o descaso em relação à saúde, ao saneamento e, principalmente, aos pobres.

Cidadania é dignidade, ensinam Tião e Marcio. Ao lado do médico, o leitor sente o drama de pacientes do SUS abandonados ao deus-dará e se revolta com o desinteresse do poder público em manter hospitais especializados em “doenças de pobre”. Uma operação desmonte atingiu em cheio o Instituto de Tisiologia e Pneumologia (ITP), no Rio de Janeiro, embora o Brasil tenha 60 milhões de infectados pelo bacilo da tuberculose. Relatos escabrosos de “atendimentos” em hospitais depauperados se sucedem em Sob pressão. Marcio salvou vidas, operou gente em condições inacreditáveis, perdeu pacientes. Já vimos essas cenas na TV, e até ficamos meio anestesiados, mas não dá para virar o rosto enquanto ele descreve a agonia de passar um dia dentro da ambulância, literalmente implorando a vários hospitais para internar o doente.

BULLYING Rapaz de família humilde, Sebastião custou a acreditar em sua própria capacidade de fazer do lixo algo realmente extraordinário. Aos 13 anos, começou a trabalhar no aterro. Também aos 13, deixou a escola depois de ser discriminado pelos coleguinhas por causa do ofício. Sofreu com a rejeição e o alcoolismo do pai, esteve a um passo de ceder à tentação do tráfico, enfrentou a depressão. Com ajuda de humanistas determinados – profissionais da área social –, conscientizou-se da importância de seu ofício para a sociedade e, principalmente, sobre a urgência de organizar os catadores de Jardim Gramacho, que em poucos anos seria fechado pelo governo. Graças a um vídeo na internet, Vik Muniz, artista plástico brasileiro reconhecido internacionalmente, foi parar lá. Em vez dos diamantes que lhe renderam tanto sucesso, usou lixo como “suporte” e catadores como modelos. Esse projeto deu origem ao filme que disputou o Oscar em 2011. Perdeu, mas a visibilidade internacional ajudou a comunidade.

Hollywood, porém, fica longe de Gramacho. O catador relata dificuldades atrás de dificuldades: não tem sido fácil indenizar e reempregar os antigos trabalhadores do aterro fechado pelo governo; picuinhas políticas sabotam a ação da cooperativa; pouco se faz no Brasil para transformar reciclagem em política concreta.

Tião ficou conhecido, virou parceiro de multinacionais, mas o glamour é “mais embaixo”: apesar da fama, ele tomou vaia dos colegas catadores na frente de autoridades, foi ameaçado por traficantes e teve de brigar na Justiça com suas agentes ao descobrir que não lhe repassavam corretamente cachês acertados. Fã de Nietzsche e Voltaire, o moço do lixão planeja estudar sociologia. Não tem vergonha de assumir: gosta de política.

REDENÇÃO Que não se esperem coitadismos, heroísmos ou redenção de fachada desses dois livros. Os autores instigam o leitor a trocar a sua inércia, aquele discurso tipo “o Brasil não tem jeito mesmo” pela consciência de que é preciso agir – urgentemente. Chefe do Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital do Galeão (RJ), Marcio Maranhão critica projetos de terceirização que mantêm colegas concursados com salários seis vezes inferiores aos de médicos contratados. Ele cobra a efetivação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no setor da saúde: do investimento de R$ 7,4 bilhões prometido para 2011 a 2014, só R$ 624 milhões saíram do papel, reclama. “Para cada 1 mil usuários de planos de saúde há 7,6 médicos. Para cada 1 mil usuários do SUS, apenas 1,95 médico”, adverte o ex-doutor do Samu carioca.

Sebastião foi do lixão ao Oscar e carregou a tocha olímpica em 2012. Continua firme nas articulações da associação de catadores e se engajou no projeto Limpa, Brasil, criado para conscientizar o povo sobre o problema do lixo. Saneamento é prioridade política de nosso país, avisa ele. “Ainda teremos mais alguns anos de luta pela frente, mas é possível transformar as coisas”, acredita. Jardim Gramacho fez fama, inspirou até novela (Avenida Brasil), mas há aterros como ele espalhados pelo país.

O doutor Marcio desistiu do emprego no estado, mas não entregou os pontos. Seu livro convoca o brasileiro a conhecer o “cenário em ruínas” dos hospitais públicos. Em breve, sua vida vai chegar à TV. A Conspiração Filmes já está rodando uma série inspirada em Sob pressão. Vem chumbo grosso por aí: a atração já ganhou o apelido de “Tropa de elite da saúde”.

SOB PRESSÃO – A rotina de guerra de um médico brasileiro
• De Marcio Maranhão. Depoimento a Karla Monteiro
• Foz, 158 páginas, R$ 38,90

TIÃO – DO LIXÃO AO OSCAR
Difícil não foi nascer no lixo. Difícil foi não virar lixo
• De Tião Santos. Com Carolina Drago (adaptação de texto) e Lara Stroesser Figueirôa (preparação de texto)
• Leya, 253 páginas, R$ 29,90

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