As armas da lucidez

Romance inacabado Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas é o derradeiro livro de José Saramago. Viúva do escritor garante que não há nada mais a publicar

por 25/10/2014 00:13
João Cortesão/AFP
João Cortesão/AFP (foto: João Cortesão/AFP)
João Paulo


José Saramago começou a escrever já maduro. Não deu ao leitor a tarefa de lhe separar a obra de juventude para eventual descarte: tudo que publicou é lúcido e relevante. Da mesma forma, ao morrer, em junho de 2010, não deixou, como muitos escritores, um baú para alimentar a posteridade e a expectativa de seus leitores. A publicação do romance inacabado Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, dessa forma, encerra sua cota de inéditos.

Pelo menos é o que garante sua viúva, Pilar del Río. A despedida de Saramago está à altura do escritor. Em pouco mais de 30 páginas de prosa criativa e original, que correspondem a dois capítulos completos e um apenas iniciado, o estilo, a maneira de apresentar os personagens e o esboço das ideias que deveriam seguir estão lá. É livro que o próprio Saramago queria para fechar sua obra. Pretendia, a partir daí, dedicar-se a ler os autores que o formaram como homem e escritor.

A história anunciada nas páginas que deixou prontas falam da vida de um funcionário burocrático de uma fábrica de armamentos, a Belona S.A (deusa romana da guerra), chamado artur paz semedo, grafado no livro com iniciais minúsculas. O homem não se incomoda com o que faz. Na verdade, gosta do trabalho e sonha mesmo ser alçado a um cargo mais importante, na divisão de armas pesadas da empresa.

Como explica Saramago, Artur não é casado, nem solteiro, nem viúvo. Encontra-se separado da mulher, Felícia, uma pacifista que não concorda com o ofício do marido. Ela é convicta ao ponto de ter até mesmo mudado de nome, já que havia sido batizada como Berta – que designa um canhão ferroviário alemão, utilizado na Primeira Guerra Mundial. Mesmo sem brigas raivosas, é nítido o mal-estar que levou à separação de Artur e Felícia. E dessa atmosfera ambígua parece se alimentar o que vem depois.

São sugeridas cenas que, certamente, ganhariam desenvolvimento no decorrer da narrativa, como o caso de uma bomba que não explodiu por ação de anarquistas; a exploração de romances e filmes sobre a guerra; e a investigação empreendida por Artur Paz Semedo nos subterrâneos da Belona S.A. Assim, o tema das armas, da banalidade da violência, das tentativas de fugir à lógica desumana da produção (uma arma é um produto como outro qualquer, só que mais lucrativo), o fato de as fábricas de armas nunca entrarem em greve – tudo isso parece aguardar o leitor de um livro que ficou como promessa ou memória não cumprida pelo humanista Saramago.

Humor e revolta A edição é caprichosa. Para completar um volume de 112 páginas, foram convidados três autores ligados de certa maneira ao escritor ou ao tema, para que escrevessem ensaios especialmente para o livro. O biógrafo espanhol Fernando Gómez Aguilera assina o ensaio “Um livro inconcluso, uma vontade consistente”. Trata-se de uma história do livro que não chegou a seu termo, que retoma as últimas obras do escritor. Aguilera defende que Saramago foi um romancista de ideias. Por isso, em Alabardas…, certamente entraria em cena uma reflexão madura sobre a questão da violência e da banalidade do mal, conforme teorizou Hannah Arendt ao analisar as práticas nazistas. “Saramago julgava que nem a impassibilidade nem o amparo da obediência eximiam de culpa”, lembra Aguilera.

O antropólogo e cientista político brasileiro Luiz Eduardo Soares, em seu ensaio “A violência segundo Saramago”, mostra como o escritor radicaliza no livro, em meio à ironia e ao ceticismo, a acusação da desumanidade que alimenta o sistema econômico – e tudo mais que depende dele, inclusive a política. “Saramago escolheu as armas, fontes inexcedíveis de dor e lucro. As armas são ponto mais impermeável ao humanismo”, propõe Luiz Eduardo.

Por fim, o escritor italiano Roberto Saviano, autor do best-seller Gomorra, parte do personagem Semedo para lembrar a história de gente como o jornalista brasileiro Tim Lopes e outros que ousaram desafiar o poder do crime organizado com armas sem poder de fogo real, seja em Portugal ou no México. E conclui: “A história de Artur Paz Semedo é uma revelação para o leitor mais distraído, a leitora mais atenta, o estudioso mais rigoroso e o filólogo mais cético. É uma orquestra de revelações”. O time de colaboradores da edição é completado com o escritor – e também prêmio Nobel – Günther Grass, autor dos desenhos feitos originalmente para o livro.

Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas (título retirado de Exortação da guerra, de Gil Vicente) traz ainda alguns trechos do diário de Saramago. Em setembro de 2009, o escritor indica que havia encontrado o caminho para o romance e registra: “Creio que poderemos vir a ter livro”. Como o romancista não começava uma obra antes de ter claro todo seu desenvolvimento, em novembro do mesmo ano escreveria: “O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’. Um remate exemplar’’. Saramago nunca foi de amenizar e pretendia silenciar depois de incomodar o leitor.

Lenientes com a violência que nos cerca, como se fosse um destino ou um grande negócio (debatemos a compra de caças aéreos como se fosse um assunto de primeira grandeza), estamos merecendo a indignação de Saramago.

ALABARDAS, ALABARDAS, ESPINGARDAS, ESPINGARDAS
• De José Saramago
• Editora Companhia das Letras
• 112 páginas, R$ 27,50

MAIS SOBRE PENSAR