Ruas chamadas desejo

Livro de Oliverio Girondo, 20 poemas para ler no bonde mostra o talento de um dos mais importantes nomes da vanguarda argentina

por 25/10/2014 00:13
Horacio Copolla/Reprodução
Horacio Copolla/Reprodução (foto: Horacio Copolla/Reprodução)
André di Bernardi Batista Mendes



Com tradução de Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr., a Editora 34 acaba de lançar 20 poemas para ler no bonde. Inédito no Brasil, trata-se do livro de estreia de Oliverio Girondo (1891-1967), um dos maiores nomes da vanguarda literária argentina. O livro foi publicado originalmente em 1922, na França, e é uma espécie de relato de viagem de um jovem interessado em tudo o que o rodeia: mulheres, e principalmente elas, bebidas, vitrines, carros e várias cidades. A obra, que tem muitos paralelos com o modernismo brasileiro, chega em uma bela edição bilíngue e com 22 imagens de Horacio Coppola, um dos grandes nomes da fotografia latino-americana.

Dono de um estilo singular e de uma poesia saborosa, leve, mas sem perder em profundidade, Girondo é ainda pouco lido no Brasil. Nascido em Buenos Aires, filho de pais ricos, o artista desde cedo viveu entre a Argentina e a Europa. O leque aberto de suas experiências auxiliou de forma decisiva em sua poesia. Com um lirismo urbano, sujo das pedras, das ruas, Girondo mostra o lado cru de tantas andanças. O mundo pode e deve ser visto por vários prismas. Girondo lança várias luzes, de cores e intensidades, sobre palavras simples, que trazem algo, que trazem muito do afiado das facas.

Girondo lançou também Calcomanias (1925), Espantapájaros (1932), Persuasión de los días (1942) e En la masmédula (1954). Também ajudou a fundar e publicar a revista de vanguarda Martín Fierro (1924-1927). Essa mesma inquietude norteou a obra fotográfica de Horacio Coppola (1906-2012), que lançou sobre seu país um olhar nutrido por viagens europeias, no afã de capturar a vibração da Argentina da década de 1930. Sua obra-prima, o livro Buenos Aires 1936, é fruto de uma síntese muito pessoal de vida. O livro de Girondo ganha, nas 22 fotografias tiradas em Berlim, Paris, Rio de Janeiro e Buenos Aires, em termos de pureza e plasticidade.

A poesia exige um tanto bom de silêncio e ócio. Participar, perceber, descortinar nunca foi fácil. Poetas são apenas passageiros. Aquele que dirige não enxerga, quando muito percebe apenas o traçado, as sinuosidades da estrada. Restam, tristes, paisagens, coisas, montanhas, o céu das pessoas todas. Libérrimo, com olhos libérrimos, o poeta tem o bolso cheio de permissões.

As cidades mudam, e mudas, mudam len-ta-men-te, enormes, numa grandeza que abarca multidões. A cidade abraça e diz tudo isso com um silêncio de pedra. As madrugadas são relativamente sonoras, as suas sombras – e as sobras –, os semáforos inúteis, vultos e curvas. É pela madrugada que os melhores ventos brincam de esconde-esconde. É nessa hora que o vento escande verbos de funduras e desalentos. Oliverio soube decifrar estes cantos, estes segredos confessáveis.

As mulheres. O melhor das ruas são as mulheres. Livríssimas, sempre estrangeiras. Elas atingem ápices em termos de silêncio e mistério. O poeta tenta desenhar, compor um mapa com tantas fortunas que se cruzam, sinalizando, formando uma teia de delícias que só elas sabem. São as mulheres que desprendem, que provocam alvoradas, são elas que pintam o crepúsculo. De tarde, são elas que oferecem, que colocam, que auxiliam o arrebol. As mulheres de Oliverio têm “olhos aquáticos”, elas têm “cabeleiras de alga”. São mulheres que “remendam as redes penduradas nos tetos como véus nupciais.” No melhor camarote, só a cidade enxerga este verdadeiro espetáculo. As cidades visitadas por Oliverio são fêmeas.

As cidades são felizes, mesmo aos pedaços, e talvez por isso mesmo. O melhor das cidades são os defeitos e os seus muitos disfarces. Estas cidades exibem cortinas que, ao se fecharem, continuam entreabertas. Oliverio articula horizontes para as cidades, que se alegram. Oliverio apresenta poemas sem açúcar, como é acerbo o gosto intransigente de todas as urbes.

A poesia é a melhor parte da história, de toda história. Oliverio só aceita provocações. As cidades são mais altas e bem mais fortes. Qual é a melhor polícia? O que querem, o que pensam os vândalos? De onde surge o ininterrupto fluxo das pessoas contínuas que nela vivem? O poeta assimila tapa e barulho, bares, carros, parques e perfumes. Mais carinho que desprezo, a delicadeza de Girondo cobre com palavras o sórdido que pode caber em cada esquina. A cidade é violenta. Mas existem vitrines pela cidade afora. O coração do poeta é seletivo e prefere a leveza do transparente, por isso mesmo esse ímã, capaz de atrair simplesmente tudo. Correrias, barulhos, atropelos, vadiagens, carros, situações especialíssimas, tudo participa de uma espécie de festa estranha. É o que parece dizer, é o que vê, fundamente, Oliverio Girondo.

Carne


Os poemas de Oliverio têm a densidade do humano. São poemas feitos de carne e bebedeiras. Dá vontade de ver, de conhecer os negros de Dacar, este nome lindo. Mesmo que não, o poema veste a cidade de cores, de luzes, de fábula. Mesmo que não, Oliverio achou um tempo para os olhos. “Penso onde vou guardar os quiosques, os semáforos, os transeuntes que me entram pela pupilas. Me sinto tão pleno que tenho medo de rebentar… Eu deveria deixar algum lastro na calçada…”

O bonde deste poeta é sem tempo, é cheio de respiros e não tem hora de paradas. Poetas vivem para o descompromisso, como são descompromissadas as coisas simples. Tudo que é paisagem é de uma simplicidade alarmante, franciscana. Ali está, ali estamos, e pronto! E isso é tudo, um tudo que o poeta diz alegremente (ele gosta e sabe usar o ponto de exclamação), um tudo que pode – e deve –, para o bem de todos, virar poesia. Trata-se do sublime. E pronto. E não estamos conversados, porque o melhor, o mais gostoso é ver. Lugares trazem lugares. E nomes: Douarnenez, Brest, Mar del Plata, Buenos Aires, Veneza, Sevilha, Rio de Janeiro.

A poesia tem dessas coisas. E a poesia de Oliverio Girondo é livre, amorosa, alegre antes de tudo. Oliverio esteve e viu de uma maneira larga, viu de um jeito profundo. O poeta, nele mesmo claustro e amplidão. Dentro dele uma capacidade mágica, extrema, dentro dele uma lucidez para relatos. O poeta pinta como pode. Oliverio não ficou para contar. Oliverito incorpora, bebe momentos, sorve de comer. Cada cidade é diferente, toda urbe tem cores, sabores, jeitos muito peculiares, tudo ligado por um fio de ternura e poesia.

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