Latitudes do poder

Professora mineira ganha o Prêmio Jabuti na área de ciências humanas com o livro O mapa que inventou o Brasil

por 25/10/2014 00:13
Beto Magalhães/EM/D.A Press
None (foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press)
João Paulo



O bom momento por que passam os estudos sobre a história brasileira se reflete tanto na academia como entre os leitores interessados, mesmo que não sejam especialistas. A cada ano cresce a oferta de ensaios e biografias, o que tem repercutido bastante no mercado. Mas poucos são os casos de autores capazes de atender a expectativa tão ampla, indo da sofisticação das pesquisas universitárias aos livros que atraem e encantam milhares de leitores, chegando muitas vezes às listas dos mais vendidos. Júnia Furtado, professora do Departamento de História da UFMG, é um exemplo raro e reconhecido nos dois mundos. Depois do sucesso de sua biografia Chica da Silva e o contratador de diamantes (Compahia das Letras), ela acaba de receber o mais prestigiado prêmio literário do país, o Jabuti, na categoria de ciências humanas, com O mapa que inventou o Brasil (Editora Versal). O livro revela um personagem fascinante, Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville, contratado pela Coroa portuguesa para elaborar um mapa da América que contribuísse para os interesses expansionistas do país, mas também atinge a dimensão política, estratégica e científica da empreitada. História, geografia, política, cartografia e sistema de conhecimento se mesclam numa obra que, ao mesmo tempo em que impressiona pela erudição, encanta pela beleza do texto e da edição, recheada de mapas históricos e iconografia. Em entrevista ao Pensar, Júnia Furtado fala de seu trabalho, de história do Brasil e da necessidade de maior investimento na área das pesquisas em ciências sociais e humanas.

O prêmio Jabuti para um livro de história, sobretudo um estudo tão sofisticado sobre cartografia, é sinal do interesse do público pelo tema? Afinal, o brasileiro, sempre acusado de não ter memória, começa a se preocupar com seu passado?

Acho que o título do livro, O mapa que inventou o Brasil, instiga o leitor a se aventurar no tema, porque usualmente pensamos que é o contrário. Isto é, que o mapa é que é produzido posteriormente ao território, o que quase nunca ocorre na realidade. Em segundo lugar, acho que a história tem se popularizado e encontrou um canal de comunicação com o grande público. Essa tendência começou na França, nos anos 1970/80, e se espalhou para outros países, como é o caso do Brasil. Acho que a questão não era o brasileiro não se preocupar com o seu passado, mas a distância que existia entre a produção acadêmica de alto nível e o grande público, o que diminui bastante hoje em dia. Outra questão importante é que os historiadores brasileiros começaram a se interessar por história da cartografia, a tal ponto que, em 2017, Belo Horizonte sediará o Encontro Mundial de História da Cartografia, e ocorrerão várias exposições de mapas que retratam a história de construção do território brasileiro.

De onde veio seu interesse pela história de Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville? Qual a importância do mapa elaborado por ele em termos científicos e políticos para a época?

Meu interesse começou quase por acaso. Como conto no início do livro, foi culpa de um pintor flamengo, um avião perdido e três irmãos desconhecidos. O que se passou foi o seguinte. Depois de ver a exposição das pinturas de Albert Eckhout – o pintor flamengo – sobre o Brasil holandês do século 17, que estava ocorrendo na Pinacoteca de São Paulo, me deparei, na livraria desse museu, com um catálogo da Coleção Brasiliana, pertencente à Companhia Bosch. Algumas horas depois, já no aeroporto de Congonhas, me deliciava com sua leitura e com as descobertas de possíveis livros ou documentos, pouco ou nada conhecidos, que poderiam ser fontes instigantes de pesquisa. Tão entretida fiquei que perdi o avião que deveria tomar para voltar para casa. Mas não foi em vão, pois, entre tantos tesouros, fiquei magnetizada por um raro manuscrito, quase escondido entre as inúmeras preciosidades que me deslumbravam a cada página. Chamava-se “Notícias das minas da América chamada Geraes pertencentes à el Rei de Portugal relatada pelos três irmãos Nunes os quais rodaram muitos anos por estas partes”. Eis os três irmãos desconhecidos! Foi intrigada com a descoberta desse documento que dei início a uma pesquisa que, anos depois, acabou resultando nesse livro. Isso porque esse documento havia sido dado a D’Anville pelo embaixador português, dom Luís da Cunha, que o utilizou para retratar a geografia dessa região no mapa que produziu sobre a América do Sul em 1748.

Qual é a importância desse mapa?

Esse mapa foi um ponto de inflexão entre a forma antiga de fazer mapas e as novidades que o Iluminismo trazia. D’Anville era um cartógrafo de gabinete, à antiga. Jamais deixou seu gabinete, que ficava nas galerias do Louvre, e usava livros, relatos de viagem e outros mapas para produzir os seus. Mas, de forma inovadora, cada vez utilizava mais mapas produzidos in loco, segundo as metodologias mais modernas de medição dos territórios. Por isso se pode dizer que ele era um homem entre dois tempos. Seus mapas eram impressionantemente exatos. Quando Napoleão invadiu o Egito, levou vários mapas para poder guiar-se pelo país e surpreendeu-se como os de D’Anville eram absurdamente exatos, um homem que jamais deixara Paris. O mesmo ocorreu com o explorador francês Bouganville quando foi explorar o Oceano Pacífico.

Seu livro procura desfazer a ideia de que Portugal estava atrasado em relação às ideias iluministas que dominavam o resto da Europa. Há um movimento de renovação dos estudos sobre o período?

Sim. Em primeiro lugar, é preciso salientar que na própria época era típico do discurso iluminista utilizar a metáfora da sombra (para se referir ao passado e presente) e da luz (para simbolizar o progresso que o Iluminismo traria). Assim, as elites intelectuais europeias da época, inclusive as portuguesas, já construíam essa representação de si mesmas. Ocorre que essa visão acabou se cristalizando, no século 19, apenas para os países ibéricos. Em primeiro lugar, isso se deu porque a nascente história da ciência tentava explicar as razões do desenvolvimento do eixo Alemanha-Inglaterra e do não desenvolvimento de Portugal e Espanha. A explicação, que não se sustenta mais hoje em dia, era da conjugação entre religião e economia, pois enquanto a ética protestante abria o espírito para o capitalismo, o catolicismo provocava o contrário. No caso do Brasil, essa visão começou a ser construída depois da Independência, pois havia a necessidade de se construir uma ideia negativa de Portugal de forma a promover o nascente espírito nacional brasileiro. Nos dois séculos posteriores, vários autores que buscavam as razões do nosso subdesenvolvimento procuraram culpar nossa herança ibérica. Ocorre que a ciência que se produzia em Portugal estava par a par com o que se fazia na Europa. Por vezes era até mais avançada. O primeiro artefato mais pesado que o ar foi criado pelo padre Bartolomeu de Gusmão, muito antes dos franceses, como também descobriram a cura do escorbuto muito antes dos ingleses, mas não será o que você vai encontrar se buscar no Google.

O livro, além da história, é também um estudo sobre a presença da ciência na sociedade e sobre as artimanhas envolvendo conhecimento e poder. Que lição fica da relação entre D’Anville e as autoridades portuguesas?

D’Anville fez a Carte de l’Amérique meridionále com o apoio da Coroa portuguesa por meio do embaixador português dom Luís da Cunha, que era uma raposa na arte da diplomacia. O objetivo era que o mapa mostrasse as fronteiras que os portugueses queriam para si na América, que avançavam pelo território que os tratados anteriores legitimavam como sendo da Espanha. Para tanto, era necessário mostrar que os portugueses haviam colonizado pontos importantes desse território, o que só seria possível com o acesso à documentação portuguesa. Foi por isso que mapas e documentos, como o relato dos irmãos Nunes, foram dados a D’Anville. Mas na última hora os portugueses desistiram de apresentar o mapa nas negociações que ocorreram em Madri entre 1747 e 1750, pois os espanhóis teriam uma dimensão muito realista da imensidade de território de que estariam abrindo mão. Com a morte de dom Luís, em 1749, o secretário particular de dom João V, Alexandre de Gusmão, preferiu mandar um mapa que falseava o Brasil, deslocando seu território para o leste, parecendo que as novas fronteiras não avançavam tanto para oeste.

Sua trajetória pessoal passa por vários temas da história mineira, como a justiça, a sociedade e o comércio no período setecentista, além de trabalhos sobre a Inquisição no Brasil. Há uma linha que caracteriza suas pesquisas?

Uma característica do meu trabalho é que o fio condutor é Minas Gerais no século 18, mesmo que, por vezes, para tanto tenha que abordar outros espaços, como é o caso da Franca e Portugal nesse livro. Uma das características do mundo contemporâneo é a especialização excessiva do conhecimento, mas até o século 18 não era assim. Descobri que para falar dessa época era necessário dominar vários campos diferentes e isso foi me levando de um tema a outro. Assim, para entender o relato dos irmãos Nunes, por exemplo, tive que me enveredar pela diplomacia, pela política, pela cartografia, pela ciência e até pela religião, pois eles eram cristãos-novos e sua visão das Minas estava marcada pelo judaísmo com sua crença na terra prometida. Foi assim que me enveredei pela Inquisição. Mas uma característica minha é que adoro aprender. Quando descubro a possibilidade de uma área, mergulho num estudo intenso, o que me dá muito prazer.

Sua biografia Chica da Silva e o contratador de diamantes teve grande repercussão, sobretudo pela nova visão da personagem, um mito na memória brasileira. Chegou a gerar polêmica entre historiadores e admiradores de Chica da Silva?

A pesquisa da Chica da Silva começou por acaso, não foi algo que me instigou de princípio, pois não tinha muita identificação com a sua figura, extremamente sexualizada e erotizada. Normalmente, o biógrafo tem que sentir uma certa empatia pelo biografado. Mas, logo no primeiro dia de pesquisa no Bispado de Diamantina, descobri os registros de oito dos 14 filhos que ela tivera. Nesse momento minha postura em relação à personagem mudou. Percebi que era possível utilizar a Chica para escrever um livro de história, para utilizá-la como fio condutor para entender o que significava ser mulher, escrava, depois alforriada e negra, em Minas Gerais do século 18. Isto é, separar a pessoa que viveu de verdade do mito que se construiu sobre ela. O trabalho foi muito bem aceito pelos especialistas e também pela maioria do público, mas houve alguma polêmica sim. Fui acusada por alguns admiradores dela de destruir seu mito, mas a esses respondo que mito é mito e história é história.

A universidade brasileira tem formado bons historiadores? O que falta para a academia brasileira qualificar suas pesquisas e gerar estudos de relevância internacional?

Hoje, é inaceitável publicar uma coletânea no exterior sem que se aborde o mundo luso-brasileiro. Isso ocorreu por duas razões principais, a visibilidade que o Brasil passou a merecer no cenário mundial, e a que os historiadores brasileiros adquiriram no exterior. A historiografia brasileira já é das mais respeitadas do mundo, porque é inovadora, criativa e assentada em pesquisas sólidas. A maior dificuldade hoje reside na língua. Para ser lido no exterior é preciso publicar em inglês e para isso há duas dificuldades básicas, os custos e conseguir um bom tradutor. O ideal é que nós pudéssemos ser capazes de escrever em um bom inglês, por isso é uma pena que o programa Ciências sem Fronteiras não abranja a área de ciências humanas, mas o governo ainda vai perceber esse equívoco.

Pode-se dizer que há preconceito com o investimento em setores considerados "não produtivos"? Os estudos de história são aquinhoados com os mesmos recursos destinados à pesquisa tecnológica?

Claro que há preconceito contra a área de humanas e sociais, que são vistas como não produtivas e seus cursos, como o de história, são sempre menos aquinhoados com recursos. O exemplo do Ciências sem Fronteiras, de que já falei, é evidente. O que é uma pena, um povo sem história é um povo sem memória e fica sempre repetindo os erros do passado.

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