Rigor inventivo

Livro sobre o trabalho de Laura Lima chama atenção para obra contemporânea, que vem se destacando no cenário brasileiro e internacional. Artista recusa classificações e se diz na %u201Cfronteira das linguagens%u201D

por 25/10/2014 00:13
Fotos: Cobogó/Divulgação
Fotos: Cobogó/Divulgação (foto: Fotos: Cobogó/Divulgação)
Walter Sebastião



O livro On off, organizado por Lisette Lagnado e Daniela Castro, traz ao público o conjunto de obras de uma artista especial: Laura Lima. Ela é mineira de Governador Valadares, de 43 anos, radicada no Rio de Janeiro, em atividade desde os anos 1990. Tem trabalhado várias linguagens – desenho, escultura, filme, foto e intervenção –, criando obras impactantes pela alta voltagem poética que nasce de situações desconcertantes postas diante do espectador. Como um palhaço caído no chão da galeria, que, de súbito, se move. Ou o mágico que passa os dias tirando objetos de uma prateleira e levando para outra. Podem ser homens nus puxando colunas de edifícios ou mulher adormecida, ligada por uma tira de pano ao reflexo no espelho, ambas mostradas em exposição antológica no Museu de Arte da Pampulha, em 2001.

O livro traz quatro textos sobre a obra de Laura Lima, assinados por críticos e artistas plásticos, detalhando 20 anos de atividade da artista, analisando e detalhando o realizado. Lisette Lagnado explica que o volume é resultado de três anos de trabalho, já que foi necessária intensa pesquisa nos arquivos da artista, cujo material nunca havia sido sistematizado. “Depois, pareceu-me importante ressaltar o fato de que a obra mobiliza diversas colaborações, para deixar emergir seu caráter polifônico, convidando artistas próximos, como Ricardo Basbaum, Cabelo e Jarbas Lopes, para dar um testemunho poético e gráfico acerca da trajetória de Laura Lima. Não queria que fosse um volume protocolar, mas que ficasse entre o livro e o objeto”, acrescenta a organizadora.

“Minha reflexão sobre Laura Lima procura desfazer alguns equívocos, como a filiação automática às práticas relacionais de Lygia Clark. Aqui, é claro que o conceito de ‘instauração’, de Tunga, foi uma espécie de vetor essencial, sobretudo nos anos 1990”, explica Lisette Lagnado. “Importante na trajetória da artista é a operação que faz no sentido de dissolver a dicotomia do sujeito moderno e uma compreensão, bem precoce, da biopotência subjacente na produção artística, por meio de instruções deixadas em aberto”, observa. “Há uma energia vital que domina as situações criadas por Laura Lima, típica das neovanguardas, porém dentro de um contexto em que a instituição arte, no Brasil, ficou mais robusta”, acrescenta. “Outro aspecto crítico à cartilha moderna, no trabalho da artista, é o desenho barroco, o ornamento”, registra.



Um trabalho impactante para Lisette Lagnado é Grande, realizado na Casa França-Brasil, pela “finíssima compreensão desse espaço neoclássico, ocupado pela atividade obsessiva de um mágico, que nos mostra todo dia o que está fazendo, porém consegue manter certa distância do público, instaurando uma opacidade desafiadora”. Ou Cinema shadow, trabalho em que Laura Lima, todos os dias, filma por algumas horas ações (sejam encenadas ou registro de atividades), no espaço onde está sendo realizada a mostra, à qual o público não tem acesso. E exibe, ao vivo, sem edição, no local e em cinema. “É preciso enorme coragem – ou alguma dose de loucura – para conceber coisas tão novas e complexas, cuja duração desafia o lazer, a métrica do espetáculo e se funde com a vida”, analisa. A organizadora destaca que uma das versões da proposta gerou filme com 100 horas de duração.

Lisette Lagnado aceita a argumentação de Laura Lima e evita definir como performance o que a mineira faz. Prefere colocar as realizações da artista em diálogo com propostas do neoconcretismo brasileiro, que também extrapolam limites e conceituações. “O grande esforço do livro, que recupera as vestimentas de Lygia Clark em busca de um autoconhecimento profundo da individuação do corpo, mas também traça linhas de afinidade que vão até Tino Sehgal e Pierre Huygue, reside em constituir e valorizar uma matriz de pensamento brasileiro, que tem autonomia intelectual e não deve nada à geração europeia”, explica. Ela critica as leituras apressadas e clichês de estudiosos que chegam de longe com seus paradigmas e escrevem sem atentar para as “filigranas de uma historicidade local”.



Possibilidades

“Ainda não achei a palavra certa para definir o que faço. E nem sei se encontrarei. Estamos numa época em que já se admite o cruzamento de fronteiras de linguagem. Tem artistas que se debruçam sobre o desenho, por exemplo, de forma legítima. No meu caso, faço trabalhos que flertam com as diferentes possibilidades de construção de obras de arte”, declarou Laura Lima em entrevista ao boletim Swissinfo.ch, por ocasião de exposição em Zurique. Considera ainda que recusar a palavra performance é um modo de acuar o uso indiscriminado que ela vem ganhando no cenário da arte contemporânea, “que acaba fazendo com que se veja a obra como enunciado, e não como fenômeno”, justifica. A artista gostaria de ver as obras ocupando lugar ainda sem nome, mesmo temendo que esteja construindo “a retórica da retórica”.

Na mesma entrevista à publicação suíça, Laura justificou não estar fisicamente nos trabalhos. “No meu caso, o corpo é mais um elemento dentro da obra. Não existe uma hierarquia de valor. A imagem é o todo”, afirma. “É escolha. Mesmo considerando que faço parte da matéria com que trabalho, gosto do distanciamento ético entre as instruções dadas e a pessoa que faz a imagem.” Ela reconhece que sua posição impõe certa radicalidade: “Estou falando do vivente, não construindo um sujeito”. O interesse por inserir nas peças o vivo, conta, levou a usar animais em alguns trabalhos. Num deles, aplicou, com técnica de megahair, penas e adornos numa galinha. “E ao voltar ao galinheiro, enfeitada, o galo só queria saber dela. Questão de gênero?”, indaga, com bom humor.

Laura Lima é formada em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e frequentou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ). Fundou em 2003, com os artistas Ernesto Neto e Márcio Botner, a galeria A Gentil Carioca. Já participou de mostras nacionais e internacionais, coletivas e individuais, entre elas, a 24ª e 27ª Bienal de São Paulo; 2ª e 3ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre; Instâncias To Age, Chapter Art Centre, em Cardiff, País de Gales; A Little Bit of History Repeated, Kunst Werke, em Berlim; e Alegoria Barroca na Arte Contemporânea, entre outras. Recebeu recentemente o prêmio Bonnefanten Award for Contemporary Art (Baca) 2014, que homenageia, a cada dois anos (desde 2000), artistas com obras excepcionais, que tenham uma influência comprovada sobre outros artistas contemporâneos.

É de Laura Lima o conjunto de trajes que o espectador pode experimentar, que fazem parte da Coleção Inhotim. A artista foi a primeira brasileira a vender uma performance (Quadris, 1995) para um museu (o de Arte Moderna de São Paulo). Lisette Lagnado, organizadora do volume, é crítica, curadora e tem vários livros publicados sobre arte contemporânea.

LAURA LIMA ON OF

. Organizado por Lisette Lagnado e Daniela Castro
. Editora Cobogó, 360 páginas, R$ 135

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