A hora do povo

Eleição não encerra o compromisso com democracia. É um passo importante, mas é apenas o primeiro

por 25/10/2014 00:13
Uelsei Marcelino/Reuters
Uelsei Marcelino/Reuters (foto: Uelsei Marcelino/Reuters)
João Paulo


O Brasil chega hoje, véspera do segundo turno da eleição presidencial, com o mais acirrado cenário de disputa desde o restabelecimento da democracia no país. O que é ótimo. Apesar da guerra de nervos e das interpretações que falam em divisão e ódio de classes, a situação precisa ser festejada: os cidadãos sabem o que querem. E, de forma plural e salutar, desejam coisas muito diferentes.

É disso que trata uma eleição, da disputa de projetos, ancorados no desejo dos cidadãos e na história de quem os propõe. O dissenso, nesse momento, é única garantia democrática que temos. Dele advém a governabilidade, por um lado, e a oposição responsável, por outro. A comemoração da vitória ou o lamento da derrota serão apenas a sombra da responsabilidade que deve se seguir aos resultados de amanhã.

O fato de a reforma política ter entrado com tanta força nessa eleição é também sinal de maturidade. Impulsionada pela sociedade em junho do ano passado, nas ruas de todo o país, a descrença com as regras que hoje viciam o jogo político se tornou ponto de honra, uma convocação ao compromisso com a mudança.

Sem uma profunda transformação das regras institucionais no campo da política, aí incluídos o financiamento e o papel dos meios de comunicação, o risco é de perpetuação de tudo que foi atacado como perverso na cena política. A reforma, na verdade, é a única saída para o fim do “pemedebismo” que tomou conta da política nacional, conforme analisou o cientista político Marcos Nobre.

A democracia existe exatamente para isso, dar capacidade política de exercício da vontade da maioria, traduzida em expansão de direitos, competência no exercício da administração e na abertura à participação na vida pública. A democracia não se encerra com a eleição, começa com seus resultados.

Com relação aos projetos em disputa, como foi repetido inúmeras vezes durante a campanha, o Brasil viu, da redemocratização para cá, o surgimento e amadurecimento de duas possibilidades: o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo. Cada lado tem sua cota de ideologia, perspectiva política, ação administrativa, entendimento da participação popular e prioridades. Para a primeira, o Estado mínimo; para a segunda, o papel indutor e popular.

Não é mais hora de repisar os argumentos que, de certa maneira, trouxeram de volta a divisão entre esquerda e direita na política brasileira. Não é bom ter medo das palavras. Ainda que muitos defendam que não faz mais sentido falar nesse tipo de polaridade no mundo contemporâneo, a campanha deixou claro que os conceitos não são apenas operacionais, como elucidativos.

Esquerda e direita têm projetos para a saúde, educação, habitação, inflação, moradia, segurança, participação popular, inclusão social, políticas sociais, direitos humanos e cultura, entre outras. São propostas distintas, cada qual com sua racionalidade. Há, por exemplo, um jeito de prover saúde que se aproxima dos valores igualitários, outra que atende aos interesses do mercado. Cabe ao cidadão, por meio das campanhas dos candidatos, conhecer e debater as propostas, traduzindo sua compreensão e desejo em voto.

O outro fato definidor do voto é a trajetória dos candidatos. Por isso a ideia de desconstrução, tão atacada durante essa campanha por um falso moralismo, tem seu potencial politizador. É preciso saber com quem estamos lidando, já que o testemunho da imprensa não se mostrou imparcial. O jornalismo brasileiro voltou ao século 19 em sua paixão ideológica inequívoca.

Este é o lado A da democracia.

O lado B é a tradução do resultado eleitoral em ações de governo. Elas devem ser exercidas por meio de políticas públicas, por um funcionalismo profissionalizado, com a provisão de serviços de qualidade, gerência eficiente dos projetos prioritários e controle severo dos desvios.

O lado mais complexo da democracia não é a escolha do governante, mas a realização do desejo popular em formas legais, legítimas e competentes. E, o que é essencial, passível a todo tempo de crítica, fiscalização e controle. Democracia supõe ordem, mas não vive nem se desenvolve sem conflito.

Universal
Mas há uma questão fundamental: os projetos, ainda que diferentes, precisam ser alimentados pela mesma lógica democrática que sustenta o sistema. Não se pode, por exemplo, julgar que é legítimo lançar mão de ideias e propostas que atentem contra as conquistas da humanidade. No campo da democracia não há espaço para o preconceito, para a violência contra minorias, para a discriminação de qualquer natureza.

O mesmo princípio vale para os direitos sociais. Não é democrático, no atual estágio da sociedade brasileira, por exemplo, propor que questões como educação, saúde e direitos trabalhistas sejam tratadas com a lógica do mercado. Direitos não se traduzem em serviços. Estamos no estágio superior da consagração dos direitos civis, não da reivindicação de ações tópicas ou compensatórias.

Sempre que se defende a retirada do Estado do campo dos direitos constituídos (ainda que com a marca das parcerias privadas ou chanceladas pelo selo falso da “modernização”), seja para dar espaço ao mercado, seja para justificar a regressão nas regras – como flexibilização dos direitos conquistados pelos trabalhadores) –, é preciso alertar para o déficit de democracia envolvido no processo.

A reinvindicação de direitos sociais já conquistados, em todos os campos, passa hoje por um momento de universalização que não permite mais retrocessos individualizantes. Não se pode barganhar algo que é da esfera da sociedade para o âmbito restrito da pessoa. Os direitos sociais não são concessões ao cidadão, mas princípios de funcionamento da sociedade.

Essas afirmações, aparentemente óbvias, na realidade apontam para um risco que parece rondar o mundo, definido pelo pensador francês Jacques Rancière em seu livro, recentemente lançado, O ódio à democracia. Ainda que seja constituída como um valor de exportação pelos países mais ricos do mundo, a democracia vem sendo submetida a um juízo de valor que, na maioria das vezes, se traduz como certo horror ao povo.

Há um inegável mal-estar dos privilegiados, não apenas no Brasil (que assistiu às cenas patéticas de desagrado com a chegada dos trabalhadores aos aeroportos, tomado como invasão de seu território quando a venda de passagens saltou de 30 milhões para mais de 100 milhões), mas em todo o mundo. Com a desqualificação dos mais pobres, as políticas que se destinam às maiorias foram consideradas populistas e as que defendem as minorias tidas como autoritárias.

Essa situação evidencia um duplo prejuízo, que atenta por um lado contra o povo para em seguida atacar os direitos humanos. A chegada do povo ao consumo, à cidadania, aos espaços sociais antes vedados e à política, não apenas como mais um voto, mas como um índice de participação, é a melhor notícia da democracia brasileira dos últimos anos. Mesmo que sociólogos experientes ainda teimem em desqualificar suas escolhas, numa melancólica memória dos tempos do voto censitário. Saudades da casa-grande.

A retomada das discussões em torno da participação direta (prevista na Constituição Federal, como muitos se esquecem), pode ser o elemento decisivo para derrotar o “ódio à democracia” com uma dose, digamos, insolente e participativa de democracia popular, que tanta falta faz ao mundo.

E é em nome dessa requalificação política, com suas consequências em termos de projeto de governo, que a opção pela candidatura de Dilma Rousseff (PT) se afigura mais democrática que a de Aécio Neves (PSDB). Há um índice de ampliação, de escala, que aponta para esse novo campo democrático que vem desafiando os pensadores políticos em todo o mundo: como democratizar a democracia num cenário de ameaça da regressão popular por razões ideológicas. A oligarquia satisfeita e pacífica sempre fez da paixão democrática um campo de realização individual, onde o bem comum não estava presente. São as democracias sem povo. Aqui, a história é outra.

Escala
O Brasil mudou muito. A sequência dos governos do PSDB e do PT formaram um momento histórico de transformação, sem dúvida, mas que incidiu de forma diferenciada na vida da maioria da população nos dois tempos de governo. De tal maneira a sociedade brasileira foi formada sob o tacão da desigualdade que só muito recentemente passamos a nos horrorizar de verdade com as marcas do passado. Mesmo assim, nem todos. Os mais iguais ainda rondam.

A saída que permitiu, no âmbito psicológico, que suportássemos tanta injustiça social foi certo entorpecimento da culpa em nome de forças que iam além de nossas escolhas. Assim, criou-se uma falsa sensação de que a vitória sobre a desigualdade seria resultado de um conjunto de ações que somariam a conquista da riqueza social, por um lado, com o empenho individual, por outro. Numa mão o crescimento do bolo, ainda que à custa do trabalhador que não tinha sua fatia; de outro o reconhecimento dos talentos, numa ideologia meritocrática de fancaria, que nada mais fez que naturalizar os privilégios.

É preciso uma inflexão destemida em direção ao combate à injustiça social. E, no estágio brasileiro de séculos de concentração, isso impõe uma agenda de políticas de intervenção do Estado na regulação e na oferta de condições de realização aos mais pobres, tendo como parâmetro a noção de igualdade.

É preciso investir mais onde falta mais. Como se trata de uma dívida histórica de longo prazo, o ideário liberal não é capaz, por si próprio, de cumprir sua ficção igualitária, mesmo em longuíssimo prazo. Os privilégios não são um acaso em nossa formação, mas uma ferramenta.

Por isso se torna importante, nesse momento, seguir políticas públicas que tenham escala, que sejam exercidas na casa dos milhões. A dívida social é antiga, grande e profunda. Na educação, por exemplo, é isso que apontam números como a inclusão de mais 1,5 milhão de jovens na universidade; o investimento em escolas técnicas (também num patamar de crescimento que ultrapassa quatro dígitos de crescimento); o acesso de jovens ao melhor ensino do mundo, por meio de bolsas em universidades de ponta; a mudança das formas de seleção para o ensino universitário; a política de cotas; a linha de crédito real para financiamento da formação.

No campo da saúde, além do incremento de gastos no setor, é preciso destacar a inclusão de 50 milhões de pessoas na atenção médica, com a contratação de 14 mil médicos estrangeiros, que cobrem um vácuo deixado pelo modelo liberal de formação de profissionais de saúde brasileiros. A criação de novos cursos de medicina vai impactar ainda o mercado, direcionando recursos para as áreas de atenção básica, clínica e medicina social. Deixada ao sabor do mercado, a saúde exclui pelos altos custos, discrimina pela porta de entrada, e se torna limitada tecnicamente na opção pelo uso intensivo de tecnologia e pelo modelo de formação distanciado das necessidades da população.

Saúde e educação são apenas sinais mais expressivos da tradução dos intentos efetivamente populares. Outros dados podem ser agregados, como a diminuição do índice de desemprego, aumento real do salário mínimo, melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano, retirada de milhões de pessoas da miséria extrema, crescimento da classe média.

Mesmo assim, esses e outros indicadores apenas tangenciam a desigualdade social brasileira. A eleição de amanhã, nesse sentido, precisa ser compreendida como uma ação para o futuro, como um aprofundamento no caminho que se mostrou historicamente mais viável para a universalização de direitos e para a conquista da igualdade. O outro caminho é a retomada, em via regressiva, de um trajeto que é limitado em suas próprias bases pela ação livre do mercado.

Crescer, distribuir renda, respeitar direitos sociais, ampliar a participação popular, incluir, proteger os direitos humanos, melhorar os serviços públicos, representar de forma altaneira os interesses nacionais no cenário internacional e combater sem tréguas a corrupção. A esses itens se resumem os dois projetos.

O que os diferencia, e parece óbvio, ponto a ponto, nas propostas dos dois candidatos, é o quanto de democracia cada um desses aspectos carrega. E democracia não pode ser apenas a condição de possibilidade do voto. Precisa ser a expressão de sua verdade. É disso que trata uma eleição: do dia seguinte.

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