Do inferno ao céu

Edição das poesias completas atribuídas a Gregório de Matos e Guerra lança luz sobre um dos mais importantes poetas da nossa literatura, autor sempre envolvido em lendas

por 18/10/2014 00:13
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Reprodução (foto: Reprodução)
João Paulo



Para não deixar dúvidas, ficou conhecido como Boca do Inferno, por sua capacidade satírica e genialmente destrutiva, capaz de atacar reis, prelados, freiras e damas de menos conta. No entanto, a força militante de seus versos parece ser o único ponto inquestionável na vida e na obra de Gregório de Matos e Guerra. Além disso, tudo é envolvido em lendas. A começar pelos anos de nascimento (1663) e morte (1699), sempre citados seguidos de interrogação. A própria biografia do poeta é mais uma construção literária que histórica.

Além disso, a obra de Gregório de Matos foi sendo divulgada por meio de recitações, canções (“tonilhos para cantar”), declamações e “folhas volantes”, que circulavam por Salvador e pelo Recôncavo. Como era comum na época, ganhavam acréscimos, leituras, interpretações, interpolações, contribuições e outros adendos, sem falar dos versos de outros que, pelo estilo e temática, acabavam atribuídos ao Boca do Inferno.

Pode parecer lenda o bastante para gerar uma posteridade de dúvidas. Mas tem mais: as edições que foram se seguindo à morte do poeta, em diversos códices e volumes, divergiam o suficiente para deixar em dúvida a atribuição mais veraz, acabando por se misturar ao gosto do público, gerando uma barafunda de citações, antologias e coletâneas. A mais conhecida delas, organizada por James Amado, mesmo exaustiva em sua pesquisa e ambiciosa em mirar a obra completa, estava longe de ser confiável em termos filológicos.

Some-se a essa situação a característica da historiografia literária em fazer o poeta uma espécie de herói romântico, que foi do contestador do poder ao crítico das convenções religiosas, passando pelo satirista muitas vezes fescenino. Para alguns estudiosos, como Antonio Candido em Formação da literatura brasileira, Gregório não teria sido representante do sistema literário brasileiro, ainda incapaz de força própria para se expressar de forma autônoma no século 17.

Já no século 19, Gregório de Matos deixou de ser um autor sem rosto para ser um personagem. Sua biografia, em grande parte inventada por seus contemporâneos, lançou mão de elementos que fazem dele um caso psicológico, muito mais que um autor. Para os românticos, positivistas e, mais tarde, concretistas, Haroldo de Campos à frente (ele chegou a publicar uma resposta a Antonio Candido, O sequestro do barroco), o poeta variou de protonacionalista a tropicalista – com direito a citação de versos em canções de Caetano Veloso.

A chegada da edição da obra completa de Gregório de Matos, em cinco volumes, pela Editora Autêntica, é um passo decisivo na mudança desse panorama. A partir de agora, o leitor e o estudioso dispõem de uma edição completa, cuidadosa, cercada de aparato técnico, interpretações, estudos, glossários de termos comuns e termos próprios e bibliografia, organizada por dois especialistas em literatura luso-portuguesa, João Adolfo Hansen, da USP, autor de A sátira e o engenho – Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (1682-1695); e Marcello Moreira, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, autor de Critica textualis in caelum revocata? Uma proposta de edição e estudo da tradição de Gregório de Matos e Guerra.

A obra foi dividida em cinco volumes. A primeira definição é que se trata de todos os Poemas atribuídos, tendo como base o códice Asensio-Cunha. Ou seja, tudo que a tradição legou como sendo de autoria do poeta integra a compilação, que tem como base um códice único, de modo a não mesclar diferentes fontes. Optou-se pela mais antiga e extensa, que circulou em Salvador nas últimas décadas do século 17 e na primeira metade do século 18. Como salientam os organizadores, os poemas eram continuamente refeitos pelo agenciamento da memória e audição, além de constantes remanejamentos em função de técnicas de vocalização, seja pela leitura ou pelo canto. Por vezes, as mudanças se localizam numa palavra, outras na métrica e, ainda, abrangendo estrofes inteiras.

Os quatro primeiros volumes trazem os poemas, a partir de organização própria do período. O quinto volume é um alentado estudo que abrange desde a ciência da fixação e edição de textos antigos até aspectos históricos e literários da obra de Gregório de Matos. Um monumento de erudição, algumas vezes com linguagem bastante técnica (há minuciosos estudos de filologia, linguística histórica e edótica, de interesse mais restrito), mas sempre com o intuito de restituir modernamente tanto a feição genuína do texto quanto sua tradição crítica. No total, os cinco livros somam mais de 2,4 mil páginas.

Os poemas dos livros se sucedem de acordo com estrutura própria da época em que foi editado o códice. Assim, o primeiro volume contém “a vida do Dr. Gregório de Matos Guerra, poesias sacras e obsequiosas a príncipes, prelados personagens, e outros de distinção, com mescla de algumas sátiras dos mesmos”. A biografia, como foi dito, não tem muitos compromissos com a verdade, funcionando mais como uma apresentação do autor a partir de algumas convenções (formação, viagens e funções exercidas). Os poemas exemplificam diversas formas: sonetos, décimas, glosas e canções, com temas elevados, mesmo com a presença das sátiras, que vão pondo as manguinhas de fora.

Os demais volumes vão, numa sequência previsível, se aproximando cada vez mais do chão e das pessoas comuns. No segundo tomo, os destinatários e personagens são clérigos, frades e freiras; e no terceiro, “poesias judiciais, correções de pícaros e desenvolturas do poeta. O último volume de versos é dedicado a poesias amorosas, nas quais se percebe o lado mais erótico e obsceno do Boca do Inferno. Em todos eles, o poeta faz uso do repertório barroco da sátira, com comparações com animais, desditas, apresentação de defeitos físicos e morais, estereótipos, vícios e deformações. Uma arte completa da difamação.

O quinto volume, além dos elementos literários destacados, faz um alerta importante sobre a leitura da obra de Gregório de Matos: o risco da leitura psicologizante (pela exacerbação das características do poeta, grande parte delas fantasiosas), ou da consideração sociológica, dando ao escritor intenções que não tinha e ao contexto uma força que não era verdadeira nos versos.

Na palavra dos organizadores, devem ser “evitadas duas perspectivas muito usuais e anacrônicas, caudatárias da crítica romântica: a da falácia biográfica e da definição da poesia como reflexo ou documento realista da realidade baiana do século 17”. Em outros termos, para a fruição da poesia em sua inteireza estética, é importante deixar de lado tanto a interpretação psicologista como a documentalista.

Com tanta informação e análise a cercar os poemas, pode-se pensar que se trata de obra antiga, datada e longe do prazer do texto. Nada mais distante de Gregório de Matos. Os poemas, em sua beleza e comunicação polida pelo tempo, em sua estética barroca cheia de inversões e paradoxos, no gozo em satirizar e destruir mitos, no erotismo e proximidade com o sexo e seus excessos, é um universo a ser descoberto. E que, ao atravessar formas arcaicas, ensina novas possibilidades expressivas, além de trazer uma incrível atualidade humana.

O ofício de maldizer pode nos levar do céu ao inferno em poucas estações. Gregório de Matos, sem perder certa maldade que nos habita todos, parece, por força da arte, operar na direção oposta.


GREGÓRIO DE MATOS
Edição e estudo de João Adolfo Hansen e Marcelo Moreira

Volumes 1 a 4 – Poemas atribuídos. Códice Asensio-Cunha, 400 a 540 páginas, de R$ 43 a R$ 47 cada

Volume 5 – Para que todos entendais – Letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII, 592 páginas, R$ 49

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