Revolução silenciosa

Números sobre mudança do panorama econômico e social das comunidades das periferias provam, na ponta do lápis, que as favelas são inspiração para o país que trabalha e consome

por 18/10/2014 00:13
YASUYOSHI CHIBA/AFP
YASUYOSHI CHIBA/AFP (foto: YASUYOSHI CHIBA/AFP )
Ângela Faria



O livro Um país chamado favela (Gente Editora), de Renato Meirelles e Celso Athayde, desconstrói a “periferia” que nós, do asfalto, tanto tememos. Há um novo universo, e ele não se encaixa naquele antigo samba famoso, no clássico Cidade de Deus, nas teses de doutorado sobre exclusão social e nem mesmo nos raps de Mano Brown.

“Uma revolução silenciosa está mudando o país”, avisa Preto Zezé, presidente da Central Única de Favelas (Cufa). Embaçou geral – e já não era sem tempo. Renato Meirelles preside o Data Popular, instituto de pesquisas especializado nas chamadas classes C, D e E. Celso Athayde é produtor cultural, um dos criadores da Cufa e autor do livro Falcão – Meninos do tráfico. A dupla expõe o novo, rico e interessantíssimo Brasil gerado dentro do Brasil.

O livro é fruto de pesquisa realizada em 2013 com 2 mil cidadãos de 63 favelas de 10 regiões metropolitanas do país. De acordo com o levantamento, 6% da população brasileira, ou seja, 11,7 milhões de pessoas, mora nessas comunidades e movimenta R$ 63 bilhões por ano. Em 2013, a média salarial do favelado era de R$ 1.068, contra R$ 603 em 2003. A parcela de habitantes de favelas considerada de classe média chegou a 65%, contra 33% há uma década. Metade dessa nova classe está no Sudeste.

Lata d’água na cabeça? Barracão de zinco? No fim do ano passado, 50% dos domicílios eram conectados à internet e 52% de seus moradores são internautas (78%, caso se considerem os jovens de 16 a 29 anos). Em 2013, 26% dos consultados planejavam comprar sua TV de plasma, LCD ou LED. Ostentação? Por meio do Google, a moçada faz pesquisas escolares e estuda para o concurso. O smartphone serve para atender o cliente.

Apesar de baixos índices de leitura e das graves deficiências do ensino público, as novas gerações de favelados são mais escolarizadas – 73% dos jovens de 18 a 30 anos estudaram mais do que os pais. Das 2 mil pessoas ouvidas, 48% acreditam que só é possível subir na vida com estudo. Nos 12 meses posteriores à enquete, 1,4 milhão pretendiam ingressar na universidade. Outros 2,5 milhões planejavam frequentar cursos profissionalizantes.

Athayde e Meirelles contestam um mito relacionado à favela: 94% dos consultados se consideram felizes, 81% gostam da comunidade onde moram e 66% não planejam se mudar. Ali, solidariedade não é só letra de samba: há com quem deixar as crianças, a “vaquinha” de vizinhos para dividir a conta do wi-fi e empréstimo do cartão de crédito para as compras do compadre. Churrasco é sagrado – e movimenta açougues nos becos.

Falta de saneamento, serviços públicos ineficientes, tráfico, polícia corrupta, violência, milícias e drogas merecem atenção dos autores. Mas essas mazelas não fazem da favela um território de coitados. Vale repetir: ali circulam R$ 63 bilhões por ano – valor correspondente ao PIB da Bolívia ou do Paraguai. Há, sim, barracos de madeirite. E casas de alvenaria com hidromassagem

Emprego formal

O polêmico Bolsa-Família – “celeiro da vagabundagem” para uns; “libertação da miséria” para outros – tem o seu quinhão nesse “pibinho”: 24% dos moradores da favela têm alguém em casa vinculado ao projeto. Entretanto, a pesquisa detectou que o principal dinamizador da economia popular não é o programa do governo, mas o emprego formal – 49% do universo pesquisado é formado por pessoas com carteira assinada, 21% labutam no mercado informal e 19% são autônomos, enquanto 4% têm o próprio negócio.

O contracheque é o agente da revolução silenciosa, abrindo portas para o crédito e o consumo. Vai ficando no passado o sujeito “invisível” e “excluído”. Por isso, os autores criticam a forma como a sociedade reagiu aos recentes rolezinhos em shoppings centers. E advertem: ao tratar aquele adolescente de periferia com polícia e spray de pimenta, perde-se oportunidade para ganhar dinheiro. Matemática é matemática: a populosa e emergente classe C exibe poder de consumo superior à soma das classes A e B.

O jovem é outro motor da mudança: 87% dos moradores de favelas têm até 35 anos. Preguiça? Gente acostumada a ganhar de graça o peixe, sem se aventurar a pescar? Não é o caso de Cristine da Silva Oliveira, ex-atendente de barraca de praia que fez curso no Sebrae e hoje toca um hostel no Morro Chapéu Mangueira, na Zona Sul carioca. Na Rocinha, com seus 130 mil habitantes, há 6 mil negócios próprios – de salão de beleza ao serviço Carteiro Amigo, que entrega mercadorias e correspondências em becos considerados inacessíveis.

Cases e cases se sucedem no livro. A Agência Vai Voando, que trabalha com carnês pré-pagos, não exige comprovação de renda, fiador ou ficha no SPC. Depois de um ano de trabalho, negociou 3 mil passagens por mês. Um país chamado favela é quase um guia para quem quiser investir nessa nova economia popular brasileira. Boa parte dela está ancorada no empréstimo facilitado. E a solidariedade movimenta esse mercado: 55% dos portadores de cartões de crédito fizeram compras para amigos da favela ou parentes.

O freguês tem lá suas manhas: gosta do que é bom, pesquisa preço e faz sacrifício para ter o original em vez do genérico baratinho e meia-boca. No morro, confiança é commodity: 78% dos consultados compram só depois de consultar amigos e parentes. A nova favela, jovem e negra, não se sente retratada nos comerciais de TV.

A petista Dilma Rousseff e o tucano Aécio Neves fizeram o dever de casa. Ambos bateram ponto na sede carioca da Cufa, ganharam festa, discursaram e levaram para casa Um país chamado favela. Vença quem vencer, o recado está dado: a nova classe média não vai deixar nem um pouco barato se controle da inflação e redução do déficit fiscal puserem farofa na revolução silenciosa. Bom conselheiro, o samba já avisou: “No dia em que o morro descer/ e não for carnaval/ ninguém vai ficar/ pra assistir ao desfile final”.

UM PAÍS CHAMADO FAVELA

De Renato Meirelles e Celso Athayde
Editora Gente, 167 páginas, R$ 29,90
Informações: www.editoragente.com.br e www.datafavela.com.br.

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