O tempo não para

Sínodo extraordinário sobre as famílias mostra uma Igreja dividida, mas em franco movimento

por 18/10/2014 00:13
Max Rossi/Reuters
Max Rossi/Reuters (foto: Max Rossi/Reuters)

 

 

Uma instituição cuja ação se conta em séculos não é muito comum no terreno sempre mutável da história. Sobretudo quando sua influência se espalha por todo o mundo e suas marcas, políticas, éticas e civilizatórias, fazem parte das referências da humanidade. Além disso, se torna ainda mais importante pela capacidade de articular valores metafísicos com as demandas postas pelos homens através dos tempos. A Igreja Católica é um dos nossos universos de significação, independentemente da fé que a sustenta.

Por isso o Sínodo Extraordinário sobre a Família, aberto dia 5 e previsto para se encerrar amanhã, merece maior atenção. Pelas informações já apresentadas ao mundo, trata-se de um momento decisivo de mudança de postura da instituição em torno de questões fundamentais, referentes à família, ao casamento e à sexualidade. Pode parecer que os debates e decisões que dali saírem atenderiam apenas aos integrantes da Igreja. A história, no entanto, mostra que o diálogo que se estabelece a partir das posições da instituição irrigam debates em todos os contextos. E, o que é mais significativo, trata-se neste caso da sinalização de uma mudança extraordinária.

Reunindo 200 bispos e convidados de todo o mundo, o encontro convocado pelo papa Francisco não entrou de forma enviesada no tema. Na verdade, trata-se da primeira vez, em muitas décadas, que a Igreja enfrenta assuntos como a homofobia, a união homossexual, a dissolução do casamento, a adoção de crianças por casais homossexuais e o direito ao sacramento dos casais divorciados, entre outras questões. O primeiro documento, divulgado na segunda-feira (e na quarta-feira contestado por parte dos integrantes do sínodo), aponta uma mudança na atmosfera sempre pesada do dogma relacionado a questões acerca da família e da sexualidade.

O documento, conhecido como “relatório após a discussão” (ou, em latim, relatio post disceptionem), elaborado por setores mais abertos do sínodo, propunha-se a ser uma síntese das discussões ocorridas até então por trás das sempre pesadas e invioláveis portas do Vaticano. A primeira boa surpresa do documento é o fato de ter como inspiração uma pergunta, não uma consagração de princípios inquestionáveis. Seria a Igreja capaz de oferecer um lugar acolhedor, um espaço fraterno, para receber os homossexuais que a procuram, sem comprometer a doutrina católica acerca do casamento e da família? A resposta foi ainda mais pertinente que a pergunta.

“Os homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã.” Sem mudar sua posição acerca do casamento e das uniões homoafetivas, a instituição, que sequer se aproximaria do tema se não fosse para condená-lo (como feito nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI), lança mão de uma linguagem compassiva e respeitosa. Há um viés de compreensão que não é muito próprio da Igreja, que tradicionalmente chega às questões com o dogma na frente e a condenação a reboque. Desta vez, o acolhimento veio em primeiro lugar.

Para muita gente, pode parecer excessivo dar valor à Igreja em temas marcados pela necessidade de modernização, sobretudo quando envolve comportamento sexual. Afinal de contas, o apego a determinações medievais e a falta de sensibilidade para as mudanças sempre sedimentaram o terreno de suas certezas. No entanto, a inclinação sistematizada no texto preliminar, lido na presença do papa, indica um impulso em direção a um debate interno, que tem tudo para se fazer ecoar em outros fóruns. A Igreja, que sempre foi uma referência na conservação, se coloca como ponte para a transformação, ainda que dentro dos limites estabelecidos pela instituição.

O próprio papa argentino tem se notabilizado por esse empenho em modernizar a Igreja, seja nos aspectos relacionados aos crimes cometidos (colocando sabiamente a justiça à frente da caridade), seja em direção à tolerância face às minorias sexuais e famílias fora do padrão tradicional. Com isso, uma saudável dimensão popular da instituição, que era se fazer presente nos debates comunitários (como na época da Teologia da Libertação, tão atacada por Wojtila e Ratzinger), volta a ser sinalizada. Espera-se que os documentos do sínodo saltem além dos muros de Roma, chegando às comunidades católicas de todo o mundo.

Já há alguns sinais dessa orientação. No Chile, por exemplo, a acusação feita pelo arcebispo de Santiago, Ricardo Ezzati, a três sacerdotes comprometidos com lutas sociais levou ao isolamento do religioso. Além disso, a Conferência Episcopal Chilena fez questão de assinalar sua ação no encobrimento da pederastia. Por sua vez, os três padres, Felipe Barrios, Mariano Puga e José Aldunate, foram não apenas reabilitados como considerados “testemunhos vivos da fidelidade a Jesus Cristo”.

Outra situação que demonstra a abertura da Igreja a um debate mais ampliado está no convite feito recentemente ao teólogo Leonardo Boff para participar do grupo responsável pela elaboração de um documento acerca da preservação do meio ambiente. Afastado da Igreja em razão de perseguições do Vaticano à Teologia da Libertação, da qual foi um dos formuladores, Boff retorna pela porta verde do cuidado devido ao planeta.

O que falta No entanto, é bom esclarecer que o documento prévio, e certamente, o relatório do sínodo (ou relatio synodi) não vai avançar a ponto de levar à aprovação a união homoafetiva como sacramento, ao fim da indissolubilidade do casamento, à flexibilização da condenação ao aborto ou à defesa de métodos contraceptivos considerados “não naturais”.

Não se trata de uma mudança nos dogmas, mas de uma inclinação ao diálogo e, o que é mais importante, ao acolhimento fraterno das pessoas, independentemente de suas escolhas sexuais. Outro ponto em que dificilmente haverá avanço, que há muito vem sendo reclamado pela sociedade contemporânea, diz respeito à pesquisa científica com embriões.

Se há tantas limitações, por que, então, o sínodo é importante? A primeira constatação é que se trata da explicitação de um cenário de intensa disputa de ideias no seio da elite eclesiástica, o que é extremamente promissor. Há divisões relativas à condução do Vaticano (inclusive no que diz respeito aos negócios), aos crimes de natureza sexual (como a chaga da pedofilia varrida vergonhosamente para debaixo das batinas por séculos) e, principalmente, às demandas por aggiornamento. A Igreja pode defender valores atemporais, mas percebeu que não pode ficar à margem da história.

Entre as questões que devem ganhar debate público nos próximos lances está o retorno da visão social da Igreja, que parece ser uma consequência dos caminhos apontados pelo pontífice. A Teologia da Libertação, como a mais acabada teoria e prática de eclesiologia do século 20, deve sair da condenação expressa para o debate acerca de seus fundamentos, inclusive em termos de análise social e atitude política.

O debate em torno da homofobia e do encobrimento da pederastia já está na ordem do dia. Da mesmo forma, os crimes financeiros e a aliança com os setores mais retrógrados do mundo, tanto em termos políticos como de conhecimento (o anticientificismo obscurantista), são campos que precisam ser irrigados pela inteligência e pela tolerância.

Se há sinais de avanço, ainda tímidos, mas capazes de mover uma instituição duas vezes milenar, há certamente os indícios de reação. O primeiro documento do sínodo, de autoria do cardeal húngaro Peter Erdo, mesmo oficial e próximo das teses já defendidas pelo papa, foi duramente contestado por parte dos bispos conservadores. Entre os religiosos participantes do encontro que questionaram o texto preliminar, estão os cardeais Raymond Burke, americano, e Stanislaw Gadeki, polonês.

O primeiro denunciou que havia informações manipuladas no documento, que se opunham à orientação de grande parte do bispado; já o religioso polonês qualificou de inaceitáveis as conclusões que, segundo ele, contrariam os ensinamentos eclesiásticos. Para o setor representado por esses religiosos, é preciso sinalizar com segurança sobre os valores sacramentais para evitar um foco “quase exclusivo em situações familiares imperfeitas”. Outros purpurados influentes, como o sul-africano Wilfrid Fox Napier e o italiano Fernando Filoni, também se opuseram ao documento.

Os ares de mudança na Igreja parecem atender a duas provocações paralelas. Uma que vem de dentro, inspirada pela ação pastoral elogiável do papa Francisco, em seu esforço humanista e responsável em relação à situação social do mundo contemporâneo. O outro incentivo vem do mundo em direção à Igreja. As pessoas parecem, hoje, carregar um sentimento de busca de ligação com valores espirituais, o que faz com que a religião se torne novamente um laço poderoso de realização humana. É uma situação aparentemente paradoxal, que floresce num tempo de excessivo materialismo e consumo.

Por isso, a manifestação da Igreja em direção ao mundo surge como elemento de grande significação antropológica. Não se trata apenas de entrar no “mercado” de almas, em busca de recuperar o rebanho perdido, mas de responder a um projeto espiritual que se tornou expressivo. A Igreja, para ocupar esse lugar, precisa do efetivo diálogo com o mundo e com o nosso tempo. Que ele seja mediado por contradições e disputas, tem sido sempre a regra do jogo. Só que agora a Igreja resolveu fazer parte do tabuleiro e dispor suas peças com mais responsabilidade.

A primeira mudança, para ser absolutamente sincero, ainda se resume à linguagem, mais respeitosa do que o habitual na consideração aos homossexuais. Mas para uma religião da palavra, já é um bom começo.

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