Horror à brasileira

Trajetória do filme de terror no país expressa processo criativo em contínua transformação, das chanchadas da Atlântida aos nossos dias, passando pela obra de José Mojica Marins, o Zé do Caixão

por 18/10/2014 00:13
Aline Arruda/Divulgação
Aline Arruda/Divulgação (foto: Aline Arruda/Divulgação)
Carlos Primati



Quando Zé do Caixão surgiu nas telas, 50 anos atrás, olhando fixamente e filosofando sobre a vida e a morte, ele fez algo além de introduzir seu personagem de maneira enfática. O olhar maníaco, obcecado, exerceu efeito quase hipnótico na plateia, convencendo todos de que, a partir daquele fenômeno, passaria a existir no Brasil o gênero do horror como visto nas produções estrangeiras. Promovido como “o primeiro filme brasileiro de terror”, À meia-noite levarei sua alma obteve um êxito estrondoso nas bilheterias e junto disso trouxe a promessa do abrasileiramento de um gênero que até então só se infiltrara nos filmes nacionais de maneira difusa. Ainda que o estilo de José Mojica Marins – diretor, roteirista e protagonista do filme – tenha idiossincrasias que o tornem singular o bastante para fascinar e assombrar mesmo meio século depois, ele claramente se inspira nos cânones do horror.

O pressuposto do gênero cinematográfico consiste na produção continuada de filmes com características semelhantes e que repitam elementos, fórmulas e particularidades do enredo. Mojica prosseguiu no horror e adotou o gênero como seu, com obras impactantes como Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), durante décadas sendo considerado o único e solitário cineasta brasileiro dedicado ao gênero. Porém, ao contrário do que se poderia esperar, não se construiu uma tradição a partir do fenômeno Zé do Caixão – nenhum outro cineasta se entregou de corpo e alma ao horror para dar continuidade às suas façanhas. O paradoxo da situação reside justamente nesta questão: a existência de Zé do Caixão nos convence da viabilidade de enxergarmos um cinema de horror nacional, porém a realidade ensina que para desvendarmos o autêntico filme de horror brasileiro, primeiro é necessário entendermos a própria trajetória do nosso cinema e como ele assimilou elementos estrangeiros e os transformou em algo totalmente diferente, genuinamente brasileiro.

O período áureo das chanchadas da Atlântida, na década de 1950, serve de exemplo de como no cinema brasileiro os gêneros então considerados tipicamente hollywoodianos eram transformados em comédias debochadas, passando pelo horror e mistério (Três vagabundos), faroeste (Matar ou correr), épico bíblico (Nem Sansão nem Dalila) e ficção científica e espionagem (O homem do Sputnik). O recado dado era o da incredulidade na capacidade do nosso cinema de fazer esses gêneros a vero, e então partir para a gozação. A paródia, o esculacho, o avacalho, emergiam como um gênero tipicamente brasileiro.

À parte as comédias e sátiras, as primeiras contribuições relevantes ao horror nacional pós-Zé do Caixão viriam do cinema marginal do Rio de Janeiro, mais especificamente do udigrudi (como era chamado desdenhosamente por Glauber Rocha), movimento sarcástico e de ruptura defendido por Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Elyseu Visconti e, mais tarde, Ivan Cardoso. Admiradores assumidos do cinema de Mojica e adeptos de narrativas experimentais livres e provocativas, eles desconstruíram as regras do gênero para gerar a reflexão do que é, afinal, o horror.

Porém, o processo de abrasileiramento do filme de horror se completa somente quando ele é combinado com duas manifestações fundamentais da nossa cultura: o erotismo latente e o sincretismo religioso. Em outras palavras, mulher pelada e macumba formam o cerne do que podemos considerar o horror brasileiro a partir da década de 1970. Rotulados de maneira genérica como pornochanchada e comumente desqualificados pela crítica antes mesmo de serem vistos, muitos dos filmes realizados na Boca do Lixo paulistana estão entre as investidas mais instigantes e ousadas em gêneros populares como policial, suspense e horror.

Vistos em retrospectiva, uma quantidade significativa de filmes desse período revela um cenário efervescente e destemido. Entretanto, foram francamente ignorados pela crítica e não exerceram qualquer influência nas gerações seguintes de realizadores. Nomes como Fauzi Mansur, Cláudio Cunha, Jean Garrett, Ody Fraga, John Doo, Luiz Castilini, Antônio Meliande, entre outros, foram descartados pela mídia e nunca mereceram a atenção dos historiadores. Hoje, alguns deles são reputados como realizadores competentes e habilidosos na absorção e replicação das regras dos gêneros populares – e apelativos – como faroeste, policial, ação, horror e suas variações, passando pelos filmes de kung fu, presídio feminino e freiras satânicas. O cinema da Boca do Lixo era barra-pesada: filmes como Excitação (1977), Aqui, tarados (1980), Pornô (1981), A reencarnação do sexo (1982), O castelo das taras (1982) e Excitação diabólica (1982) apelam ao conteúdo sexual em seus títulos, mas estão entre os filmes de horror mais radicais já feitos no Brasil.

Uma proposta mais solar de horror surgiu pelas mãos do carioca Ivan Cardoso, que inventou o terrir, ou seja, terror com humor, mescla de chanchada tropicalista temperada com erotismo e monstros clássicos. Ivan destilou a receita comercial perfeita, combinando astros globais e veteranos das chanchadas, mulheres sensuais, música jovem, muito deboche e monstros tradicionais nos filmes O segredo da múmia (1982), As sete vampiras (1986), O escorpião escarlate (1990) e Um lobisomem na Amazônia (2005). O erotismo nos filmes de Ivan é quase pueril se comparado à doentia e perversa combinação de sexo e horror do cinema paulistano. É o horror adolescente com um tom de farsa assumido.

Reinventando tudo

Depois de enfrentar um período de inatividade entre 1990 e 1995, a produção cinematográfica no país reencontra um cenário completamente diferente: a Boca do Lixo, cujo sistema de produção era relativamente autossuficiente, havia sido devorada pelo sexo explícito; cineastas veteranos se aposentaram ou migraram para outras mídias, a cena independente/marginal não mais existia. A retomada chegou com uma proposta de cinema mais profissional, mais afinado com o cinemão de Hollywood, principalmente na forma, mas também no conteúdo. A nova geração de cineastas pouco (ou nada) trazia do cinema brasileiro de antes.

A Conspiração Filmes, produtora vinda do mercado publicitário, é responsável pelos primeiros longas da retomada a flertar com o suspense policial e o horror, com Traição (1999) e Gêmeas (2000), com estética e estilo narrativo que remetem ao cinema comercial estadunidense. Há mais de Tarantino ou De Palma nesses filmes do que de Mojica ou Khouri: a geração que teve parte de sua educação fílmica propiciada pelo home vídeo era também a primeira a assumir sem culpa a influência dos gêneros hollywoodianos.

Esse deslumbramento criou a possibilidade de se começar a produzir no Brasil filmes de suspense e horror de maneira sistemática e continuada; por outro lado, revela a falta de repertório ou de conhecimento de alguns cineastas. Tomás Portella, que dirigiu Isolados (2014), não apenas se autoproclamou pioneiro no gênero suspense como previu que “virá muita gente depois”. A imprensa repetiu seu discurso de ineditismo, ignorando um sem-número de filmes de suspense feitos no Brasil há décadas. Kleber Mendonça Filho, diretor de O som ao redor (2012), falando sobre horror nacional, declarou numa entrevista em março de 2013 que “é assustador que o último projeto do gênero tenha sido o do Mojica em 2008”. Com isso ignorou filmes como Mistéryos (2008), O fim da picada (2009), Bellini e o demônio (2010), O guri (2011), Trabalhar cansa (2011) e Desaparecidos (2011).

O empecilho talvez resida nesta teimosia de, ao pensar em cinema de horror nacional, nossos olhos buscarem algo nos moldes de Zé do Caixão. Isso sempre impossibilitará enxergar o fascinante e sempre mutável filme de horror brasileiro; não nos fará ver obras como FilmeFobia (2008), A erva do rato (2009), Os inquilinos (2010), Os famosos e os duendes da morte (2010), Reflexões de um liquidificador (2010), Trabalhar cansa (2011) ou mesmo Quando eu era vivo (2014) e Gata velha ainda mia (2014), com seus rituais satânicos e velhas loucas, como possibilidades de um horror mais diversificado e sublime.

A atual safra de horror nacional vem reforçada com os jovens realizadores independentes, que exibem talento e capacidade para fazer filmes com acabamento profissional e esbanjam amplo repertório. O capixaba Rodrigo Aragão (Mar negro), o paranaense Paulo Biscaia Filho (Nervo craniano Zero) e o gaúcho Davi de Oliveira Pinheiro (Porto dos Mortos) abriram caminho por vias alternativas e conquistaram sucesso internacional onde somente Coffin Joe esteve antes.

Numa cultura marcada pelo realismo fantástico, o horror vai além, muito além: está no cordel, no folclore, no candomblé, nos fantasmas da ditadura, no medo da violência, fome e desemprego. Se Zé do Caixão é o pai legítimo do filme de horror brasileiro, podemos dizer que os seis ventres que ele deixa impregnado com sua semente ao final de Encarnação do demônio (2008) equivalem às diferentes tendências que o gênero pode trilhar em nossas telas.

Medo e delírio

Este texto é uma versão reduzida de artigo inédito a ser publicado no catálogo especial da mostra de filmes Medo e delírio no cinema brasileiro contemporâneo, que vai do dia 24 deste mês a 2 de novembro no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Informações: www.medoedelirio.com.br

. Carlos Primati é jornalista e pesquisador especializado em cinema de horror.



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