Perder para ganhar

Em uma eleição democrática, as derrotas ensinam e politizam mais que as aparentes vitórias

por 11/10/2014 00:13
Paulo Filgueiras/DEM/D.A Press
Paulo Filgueiras/DEM/D.A Press (foto: Paulo Filgueiras/DEM/D.A Press )

O resultado do primeiro turno das eleições deste ano, já analisados à exaustão, têm sido objeto de um padrão muito comum de consideração por especialistas e palpiteiros: assim como as escrituras sagradas, cada um o interpreta de forma a se aproximar de suas convicções. Há uma tendência, mais que natural, de partir dos bons resultados para afirmar sua visão de mundo. Assim, o mesmo índice de votos pode ser visto como vitória para os dois lados, numa fratura da lógica e do bom senso. Há um ganhador e um perdedor, mas de acordo com os interesses, parece que os dois ganharam e os dois perderam, ao mesmo tempo.


Deixando de lado sutilezas metodológicas ou viés ideológico do analista, talvez seja útil adotar diferente ponto de vista: partir das derrotas. Sabemos todos que perder é uma situação muito mais pedagógica, mobilizadora e emocional. E não há nada mais útil no campo da política que a pedagogia, a mobilização e a emoção. Por isso, vamos às boas derrotas do pleito. Cinco delas, pelo menos nesse momento, merecem a atenção do eleitor, que tem alguns dias pela frente para se reorientar no novo cenário.

1) Corrida de cavalos
A mais explícita das surras que as eleições deixaram este ano foi dirigida aos institutos de pesquisa. Considerado como ferramenta útil ao direcionamento das campanhas, o produto dessas empresas foi ainda conquistando o lugar mais importante na cobertura eleitoral.
A expressão americana horse race stories, que destaca a prioridade dada aos levantamentos de intenção de votos, define bem o que se viu no jornalismo: pesquisas alimentando coberturas que indicavam novas pesquisas, que por sua vez repercutiam as pesquisas anteriores. A imprensa, de certa maneira, agiu como se publicasse boletins de turfe. Quem perdeu, além do jornalismo político, foi o leitor e o eleitor, que não dispuseram de boa informação para sustentar sua escolha. Jornalismo deve ser instrumento inteligente para qualificar a opinião, não papel branco para ser sujo com a tinta das pesquisas. Para isso, já bastam os comitês de campanha.


Os institutos de pesquisa, antes mesmo do papelão nos números, parecem também ter cedido a uma psicologia do poder ao determinar temas mais sensíveis não pela relevância pública, mas por sua tradução operacional em termos de votos. Ao fim, com o fiasco da boca de urna, levaram para a vala da desconfiança seus próprios fundamentos. Quem sempre desconfiou dos levantamentos tem agora argumento irrefutável; quem sabe que elas podem ser importantes, vai precisar qualificar seu trabalho.


A derrota dos institutos aponta para a necessidade de sua perfectibilidade técnica e social. O que, para a política, é um bom resultado.

2) Casa-grande
O fim das oligarquias foi uma boa-nova. Mas não em todos os estados. Em Alagoas, por exemplo, Collor se reelegeu e o filho de Renan Calheiros foi eleito. Mas o resultado no Maranhão, com a dupla derrota do clã Sarney e Lobão, enterra uma triste recorrência na história política brasileira. A política, no Brasil, tem sido considerada como extensão dos negócios familiares. Não é incomum mulheres disputarem vagas de maridos com candidaturas impugnadas. Este ano, houve outros herdeiros preteridos pelos eleitores (Nelson Trad, Josué Alencar, Paulo Bornhausen e Ivone Cassol, por exemplo), e muitos que ainda seguraram a tradição colonial.


O melhor signo dessa mudança talvez seja a família Genro: Luciana não votou no pai para o governo do Rio Grande do Sul, por apoiar candidato de seu partido; e não teve o voto de Tarso para a sua candidatura à Presidência, que batia de frente com a de Dilma, que é de seu grupo político. Não é sinal de desamor filial ou paterno, mas de respeito a valores republicanos e convicções ideológicas. Podem estar juntos agora. É para isso que serve o segundo turno.


A derrota de parte das oligarquias regionais, sobretudo da mais longeva, é um ótimo sinal, uma perda que acrescenta e amplia a representatividade política. Há momentos em que a genealogia é sinal de honra, mas em outros pode ser puro constrangimento.

3) Riso de Marina
Marina Silva foi a derrotada mais feliz de que se tem notícia. Seu semblante carregado, sua expressão de cansaço, seu peso na alma em contraste com a fragilidade do corpo, tudo isso parece ter sumido assim que foi proferida sua derrota. O terceiro lugar deu a ela a proeminência de uma oposição com 20% dos votos e a promessa de retorno às suas causas de origem. Mariana pode agora deixar o Banco Central de lado e voltar a falar de assuntos mais importantes.


A derrota de Marina traz para o segundo turno um tema que ela não tocou em sua campanha: a ecologia. Por isso, mais que disputar seu legado em termos de votos, os dois candidatos que ficaram na disputa, Dilma Rousseff e Aécio Neves (que se esmeraram para “desconstruir” a candidata, que facilitou a tarefa com suas incongruências), precisam herdar suas bandeiras. Identificados, os dois, com projetos que passam a largo do desenvolvimento sustentável, precisam deixar Marina de lado e buscar os eleitores da antiga seringueira. Os acordos partidários e até o apoio explícito da candidata derrotada serão menos importantes que os gestos de Dilma e Aécio.


Além da ecologia, a trajetória de Marina Silva aponta para uma concepção particular da esquerda, que não é nem socialdemocrata nem marxista-leninista. Com a derrota de Marina, a campanha, finalmente, deve ganhar um tema fundamental, a ecologia; e uma provocação ideológica em termos de exercício da política num cenário de demanda por maior participação social. A Marina de hoje não se mostrou à altura da Marina da vida toda.

4) Demasiado humano
“O senhor acredita em Deus?” “Já fumou maconha?” “É a favor do aborto?” “É casado, tem filhos?” Essas perguntas já foram responsáveis por derrubar muitos candidatos. Na verdade, eram feitas mais para destacar os jornalistas que para informar o eleitor. Temas espinhosos eram empurrados para debaixo do tapete, com negaceio dos candidatos, com medo de saírem chamuscados. Na atual eleição, os temas comportamentais, relacionados aos LGBTs, descriminalização das drogas e direito ao aborto, entraram pela porta da frente. O que é sinal de civilização, não de permissividade. Todo candidato precisa ter posição clara sobre esses assuntos, já que são índice de sua visão no campo dos direitos humanos.


O que se acompanhou foi uma aberta defesa de posições, com a indicação clara para o eleitor de quem era não apenas conservador, mas francamente reacionário. A defesa do direito das minorias, um sinal de avanço democrático, ficou com dois candidatos minoritários (Luciana Genro e Eduardo Jorge), que levaram aos debates televisivos os melhores momentos em termos de conscientização, cumprindo parte importante de seu compromisso. Campanha também serve para civilizar.


A derrota do oportunismo de perguntadores que gostam de aparecer mais que o candidato foi importante ainda por neutralizar o viés religioso, num debate que precisa ser marcado pelo domínio do Estado laico. Todo candidato, sobretudo os dois que agora concorrem à Presidência, precisam se manifestar, sem tergiversação, sobre a questão das drogas, do aborto e da criminalização da homofobia. Não podem dizer que cabe a eles apenas cumprir a lei. Precisam tomar a frente do debate. Direitos humanos não é tema para derrubar candidato, mas para qualificá-lo frente ao eleitor.

5) Esquerda e direita
As eleições foram vendidas exaustivamente como uma contraposição entre continuidade e mudança. Há uma defesa da alternância de poder como um valor em si. Não é disso que se trata. O princípio da alternância existe exatamente para que haja continuidade democrática na gestão do Estado. Os projetos definidos como prioritários pelo eleitor devem ser postos em funcionamento pelo Estado, que não é do governo, mas da sociedade. O que o país precisa é do melhor projeto. Para isso, é fundamental debater propostas para todas as áreas, da macroeconomia à gestão dos serviços públicos mais localizados. Eleição existe para isso.
A retomada da polarização entre os projetos desenvolvimentista-social de Dilma Rousseff e neoliberal de Aécio Neves, sem entrar em juízo de valor, pode ser, de acordo com a teoria política clássica, traduzido como a recuperação do confronto entre esquerda e direita. O eleitor está sendo chamado a escolher qual é o melhor modelo para o país.


É relativamente fácil, quando se quer ser honesto, distinguir as posições de direita e esquerda em termos de educação, saúde, segurança, habitação, políticas sociais, direitos humanos, cultura e comunicação social. Mais explícito ainda quando se trata de condução da economia e priorização de investimentos. Totalmente transparente quando entra em cena o equilíbrio necessário entre democracia direta e democracia representativa.


A derrota do discurso mudancista vazio repõe o verdadeiro debate sobre propostas reais em cena. É isso que o eleitor merece na segunda etapa da campanha.

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