A vida e o papel em branco

Elvira Vigna lança o romance Por escrito, obra que questiona os acertos e desacertos dos dilemas existenciais dos nossos dias

por 11/10/2014 00:13
Renato Parada/Divulgação
Renato Parada/Divulgação (foto: Renato Parada/Divulgação )
André di Bernardi Batista Mendes

Depois de O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto, Coisas que os homens não entendem, Deixei ele lá e vim e O que deu para fazer em matéria de história de amor, entre outros, a escritora carioca Elvira Vigna volta a surpreender com o ótimo Por escrito. Longe do tradicional, Elvira vem conquistando, desde o fim dos anos 1980, um jeito próprio de dizer a sua literatura. Ela, um dos grandes nomes contemporâneos, é dona de um universo pessoal que parece se expandir a cada romance ou conto que publica. Com uma linguagem cortante e antissentimental, e uma visão de mundo cáustica e desiludida, os personagens de Elvira caminham trôpegos por cenários de devastação afetiva e emocional. Por escrito é uma história de separações e erros.


Existem escritores que já apontam o caminho de cara. Já nas primeiras páginas, nas primeiras cenas o leitor pode adivinhar, com um pouco de intuição e perspicácia, o que vem pela frente. Estes são bons. Existem escritores que plantam dúvidas. Matreiros, só eles sabem das tramas e tramoias. Esses são ótimos. Mas existem livros, mas existem escritores que desconhecem, que claudicam a cada passo. Diante da página em branco, existem autores que escrevem para saber o final. Esses são os piores, os mais perigosos. É o caso de Elvira Vigna.

Em Por escrito, Elvira fala sobre o fim das viagens. Contudo, ela chama a atenção para o começo de outras. Elvira parece perguntar: “Por que se zanga o vento com as árvores?”. Ou ainda (e mais importante): “Para onde o vento quer nos levar?”. Elvira parte do princípio, sem garantia alguma, sem saber da existência de portos, sem previsão de chegadas. Existe, contudo, ressalta ela, esse ímpeto, esse impulso, essa veemência. Esse ir para ver.

Longe do estilo de Clarice Lispector, mas perto de Clarice, perto de Khaterine Mansfield, Elvira dá voz a personagens que, ao se deitar, no escuro, adivinham o teto e as paredes (e principalmente elas) por longos minutos, desdobrando-se, desacumulando coisas, importunando, tirando imagens de um lugar de guardados. Elvira trabalha diante de coisas, diante da dimensão de coisas impronunciáveis. Até chegar a claridade da manhã, que tarda.

Elvira fala sobre uma mulher que escreve, que toma nota de fatos risíveis. A vida poder ser dita por meio das palavras. Elvira também escreve sobre personagens que inventam névoas de neblinas, personagens que delicadamente insistem num duro processo de apagamentos. Existem pessoas que dizem adeus. A vida é frágil?

A força do feminino também surge forte a cada ocorrência de Por escrito. A personagem principal sofre de inquietudes e sabe de suas lágrimas, que ventam, que molham, que fazem lindos os olhos nos momentos mais estranhos e impróprios. Não é fácil encarar/carregar as pedras de uma matula existencial. “É a ideia de fim. Porque quando acabam, as coisas, tenho essa vontade de que não acabem, mesmo quando, como é o caso aqui, nesse dia e hoje, eu aqui sentada, as coisas não propriamente acabem, mas são acabadas, e por mim, que fico então com uma vontade de que não acabem.”

Elvira Vigna é, antes de tudo, uma escritora inteligente. “Mas sei por que tomo nota de ausências, eu sei. É isso, é isso que escrevo. É uma questão do que está na nossa frente e nem notamos, o que está ausente mas presente. Qual dos ontens será o amanhã.” Elvira escreve como se pudéssemos, pela vida, a qualquer hora, rasgar, se não todas, pelo menos muitas de nossas páginas em branco.

“Tem uma imagem que me redime. A dos carros em alta velocidade mas que emparelham. Então, por um momento, quem está dentro de um e de outro terá a impressão de estar parado. Mas não estão. Estão a mil por hora.” E simplesmente o mesmo ocorre quando embarcamos na história. Leitor e Elvira, equiparados, condizentes, a mil. Elvira escreve sobre o principal, que se perde a cada página, feito fumaça, como neblina.

Personagens Elvira desconhece pauta e linha reta. São poucos, são raros estes escritores que pintam e bordam, que riem diante do vácuo, sem saber de casimiras e sedas, sem nenhuma ou pouca teoria sobre a vestimenta ideal para o próximo instante. Existe um tipo de literatura que se mostra, nua. Existem palavras quebradiças. Existem escritores que tecem, fio a fio, linhas da mais pura leveza, da mais pura fragilidade, mesmo diante de situações críticas. Elvira escreve sem maquiagem, justamente para o pior sobrevir inteiro. Elvira escreve diante de neblinas, num descortinar infinito, porque a vida é feita, é bonita e feia de sismos de movimento e mudança.


São incríveis as descrições de situações e universos. Os personagens deste belo e profundo livro buscam, contudo, uma espécie de permanência. Eles retomam a lembrança de pelo menos três pessoas dançando juntas, pode ser passinho, pode ser tango, pode ser improviso. A solidão tem saudade de sincronismos e alegrias.

Elvira sabe do essencial. É dele que surgem sortilégios e tormentos. É importante dar o devido valor às imprecisões. Escrever pode ser o mesmo que tentar segurar o que termina. E tudo finda. E tudo desaparece. As caligrafias, o que fica por escrito esconde coisas e segredos. São linhas de pura vida e desencanto, muito embora existam pequenas certezas, pequenos lampejos.

Elvira gosta e sabe de literaturas. Ela escreve como quem encara um turbilhão, seguindo como pode um fluxo de águas, num rio abaixo, até atingir uma certa musicalidade própria, conquistada, adquirida e muito peculiar. Elvira rasga, quando escreve. Ela insiste e deixa brechas, ela abre, com as unhas, mas com gestos carinhosos, lacunas para o desacerto. Ou não. “Ou se é porque de vez em quando é preciso chorar e nem por nada, chorar no sol, na brisa, por todos os outros dias.”

Elvira parte do branco para chegar ao cinza gradativo, que some para dar lugar a um monte de cores fortes. Os corações dos personagens que não sabem, os corações dos personagens que esperam transformam o que antes era puro vermelho em cinzas, daí para o rubro novamente, daí para o negro, daí para os enganos do azul, e vice-versa. Espirais. Sem volta. Os personagens de Elvira não se enxergam, o outro, apesar de muito próximo, meio que não existe. O outro, no devagar, vai sumindo aos poucos. Elvira, atônita, tenta captar estas imagens antes de toda e qualquer dissolução. De tudo fica um pouco, já disse Drummond. Por escrito é também uma história de desencontros. Mas também é uma história de achados, de pessoas que insistem em manter a dinâmica dos olhos.

Elvira sabe do branco da página, lugar de névoa e solidão. Pois ela mancha este lugar de iniquidades. Ela suja esse espaço, ela dilacera, quando tudo que está por aí serve para desunir e separar. Existe um jogo de só vencidos. Um jogo, uma ciranda de mais perdas, que delícias. Elvira realça com cores nítidas os enganos, o limite, a instabilidade, o insustentável que devora todos os personagens. Toda hora, e aos poucos. Mas não se trata de um livro triste. Dentro do breu trabalham algumas luzes.

Esta boa escritora provoca, incita, estimula e lança os dardos num jogo de desafios. Sem alvos. Cabe ao leitor um buquê de escolhas. Para um lado, o incerto; por outro, o descaminho. E Elvira, esperta, solidária, faz questão de caminhar junto. Existem livros que cativam e incomodam por inteiro. É o caso dos personagens de Elvira Vigna. Molly, Izildinha, Valderez, entre outros. Algumas pessoas prejudicam a boa ordem do mundo.

Elvira Vigna nasceu em 1947, no Rio de Janeiro, e atualmente mora em São Paulo.

POR ESCRITO
De Elvira Vigna
Editora Companhia das Letras, 312 páginas,
R$ 47

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