Caminhos da arte e da vida

A viagem da trupe do Galpão chega a Palmas, em Tocantins, e segue pelo Maranhão e Pará. Além das apresentações em praças públicas, a companhia mineira faz questão de se encontrar com grupos de teatro em todas as cidades da turnê de Os gigantes da montanha

por 11/10/2014 00:13
Fotos: Bia França/Divulgação
Fotos: Bia França/Divulgação (foto: Fotos: Bia França/Divulgação)
Eduardo Moreira



Dezenove de setembro. Chegada ao Tocantins. O estado nasceu da divisão de Goiás. Palmas é uma cidade planejada, criada em 1989. As distâncias são bem grandes e o caminho do aeroporto ao hotel está cheio de largas avenidas. Construída nos moldes de Brasília, com amplos lugares vazios, a cidade obedece à lógica pragmática das construções de caixote. Fico pensando no dinheiro que se empenhou para construir uma cidade tão espalhada e tão pouco ocupada. De dia, o sol é tão inclemente, que fica difícil percorrer suas longas distâncias. Ontem foi impossível encontrar uma única farmácia.

Nossa agenda está bem cheia. O dia começa com entrevistas para as televisões locais. Nossa divulgadora pede desculpas pelo fato de os repórteres não conhecerem bem o trabalho do Galpão. Nada mais natural. Na sequência, umas 30 pessoas estão presentes para ouvir sobre a história do grupo. É incrível como muitas delas dizem que o Galpão foi e é uma referência. Algumas já assistiram a espetáculos do grupo em Brasília, Goiânia e Rio de Janeiro. Os vídeos sobre teatro de rua, distribuídos pelo Inacem ao longo da década de 1980, foram amplamente mostrados e discutidos entre os grupos do interior mais profundo do Brasil.

As contínuas viagens do grupo, privilegiando regiões que estão fora do circuito cultural, também são um fator para estimular a empatia que nasce entre as pessoas e o trabalho do Galpão. A plateia, em sua grande maioria, composta por professores e alunos de teatro, mostra-se agradecida pelo fato de estarmos aqui, circulando por uma região normalmente tão esquecida.

A apresentação está marcada para o centro cultural, no meio da Praça do Jacaré, que tem uma enorme escultura de pedra, com um formato do réptil. O camarim está montado num estranho vão metálico erguido no meio de uma paisagem um tanto desoladora. No horizonte, desponta uma esdrúxula réplica verde da Estátua da Liberdade, revelando nossa macaquice diante de um símbolo que não tem nada a ver conosco e com nossa cultura. Alguns pés de jambu – árvore também conhecida como azeitona-do-norte –, situados no fundo do cenário, ajudam a amenizar a fúria do sol. A passagem do som se arrasta sonolentamente. A temperatura elevada nos impõe um ritmo mais lento. Mil cadeiras estão espalhadas pelo espaço da plateia, fazendo com que algumas fileiras fiquem muito distantes do cenário. Será que teremos tanto público? Para nossa primeira visita, fica a dúvida, ainda que a receptividade ao encontro da manhã tenha sido superior às nossas expectativas.

Oito e meia da noite. Os últimos detalhes de maquiagem e de figurinos vão sendo arranjados e chega Helvécio anunciando que as cadeiras já estão quase todas tomadas. A notícia nos deixa mais aliviados. Acho que vamos passar no teste de Palmas. Talvez a parceria e a divulgação junto à Universidade do Tocantins tenham dado bons frutos. Nove e 10. Toninho esquece de colocar o microfone e somos obrigados a atrasar mais um pouco o início. Já na primeira música, aplausos entusiasmados. Toda a apresentação transcorre na mais absoluta atenção do público, que acompanha o espetáculo com inteligência e no mais absoluto silêncio. O resultado é surpreendente sob todos os aspectos. Pirandello chega ao Tocantins.

20/9


Oficina e ensaio aberto para alunos e professores da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Experimentamos pela primeira vez abrir um processo de ensaio para que interessados possam testemunhar. Lydia, Julio e Toninho dão alguns jogos e exercícios para os alunos na primeira parte do trabalho. Na sequência, ensaiamos uma fusão de músicas numa passagem do espetáculo, em palmas rítmicas, fazendo a transição entre as canções. O ritmo, além de muito básico, continua frouxo. O ensaio ainda poderia se arrastar por um bom tempo, mas as horas avançam e só nos resta parar e apresentar a primeira parte da peça. A apresentação sai dentro do esperado, com algumas correções e comentários que ajudam a caracterizar o espírito de um mero ensaio. Ao final, aplausos entusiasmados e generosos. Um rápido debate e é hora de correr para arrumar as malas no hotel, comer e partir para Araguaína, ainda em Tocantins.

Pegamos o retão da Belém-Brasília. A estrada é quase exclusivamente ocupada por caminhões. O rastro das queimadas está por toda parte e a secura junto à claridade do sol castiga as vistas. Quase 400 quilômetros precisam ser percorridos e a estrada não permite grandes velocidades. Nessas viagens pelo país, tenho sempre a sensação de um desperdício desenfreado de nossas fontes naturais. A região de Palmas é cercada de lagos (chamados de praias) que se originaram do represamento do Rio Tocantins. A cidade tem árvores que ainda não cresceram suficientemente.

Ao final do espetáculo, um rastro triste de lixo foi deixado para trás pelo público. Ainda temos um longo caminho de educação e de conscientização para atingirmos um grau mínimo de civilidade. Isso se reflete na nossa relação com a natureza, as matas, as águas, todos os recursos naturais. A impressão nítida que temos percorrendo a vastidão da rodovia é de que a terra está secando drasticamente e logo os recursos tenderão a escassear. E, pior ainda, ninguém parece efetivamente se preocupar muito com esse estado. Enquanto isso, carros de som com jingles assustadores fazem propaganda de políticos nem um pouco confiáveis. Será que o teatro pode contribuir, ainda que de forma ínfima, para lutar contra esse estado de insensatez que parece entorpecer a humanidade? Queremos acreditar que sim.

21/9

Estamos em Araguaína. A cidade é compacta, meio decadente, sem árvores e com ruas estreitas. Fundada há 45 anos, tem o aspecto de uma terra de ninguém, como se aqueles que aqui vivem não pertencessem a esse lugar. Pela manhã, realizamos um encontro com estudantes da UFT. Eles nos dizem que a população daqui foi formada por gente que migrou principalmente do Piauí, Maranhão e Pará. Os retirantes da esperança, numa espécie de Eldorado numa das fronteiras do Brasil. Aqui não existe escola de artes cênicas e nosso público é composto de jovens de seus 20 anos, estudantes de turismo, literatura e engenharia. A qualidade das perguntas e das questões levantadas é interessante, fugindo da especificidade das plateias iniciadas.

Como a companhia de Ilse de Os gigantes…, de Pirandello, dormimos nas estrebarias. O hotel é da fundação de Araguaína e sua construção lembra um presídio. O que incomoda num hotel ruim é, especialmente, a sujeira. A cidade é quente, de um calor que tira todas as nossas forças. Não há outra saída a não ser ficar entocado num quarto com ar- condicionado. Os restaurantes que frequentamos parecem pouco asseados. Há uma miscigenação de tipos humanos que é estranha e bela, numa mistura de negros, mulatos, cafuzos, mamelucos e brancos. O Brasil nos assusta e encanta. Um calor avassalador, uma sujeira que se espalha por todos os cantos, uma exuberância de árvores e frutas, um povo simpático, curioso e acolhedor, alheio a toda essa falta de organização e de estrutura.

Nossa apresentação está marcada para a Praça São Luiz Orione, às 21h, de domingo. O horário não parece muito apropriado, mas vem de uma exigência da igreja, para que o espetáculo não interfira na dinâmica das missas. O padre não se mostra muito simpático à arte. As precárias condições de nossa hospedagem criam um misto de sentimento de revolta e de chacota entre os atores. Todos fazem piadas e alguns ficam sinceramente deprimidos. A precariedade torna-se inevitável e é impossível controlar a qualidade do apoio que vai surgir das prefeituras e das secretarias dessas cidades do interior de Tocantins. Hotéis e restaurantes de permuta quase sempre se tornam inevitáveis e armadilhas necessárias.

Vinte e uma horas e a praça está apinhada de gente. As mil cadeiras estão ocupadas e as laterais estão tomadas de pessoas de pé. Na música de abertura, a plateia fica coberta por flashes de celulares. J., o colunista social da cidade, atraído por nossas atrizes globais, está com seu iPhone na primeira fila, enviando torpedos. Um grupo de teatro da cidade, com seus componentes uniformizados, trouxe uma câmera e coleta depoimentos da nossa equipe. A hora avançada e a complexidade da trama da peça acabam dispersando uma boa parte da plateia. As pessoas parecem reagir com um misto de encantamento e de apatia.

Meia-noite e meia e a filha de 11 anos de um dos carregadores diz que quer ir embora com Inês e com Teuda. Diz que queria ter um “celular de maçãzinha” e quem sabe está sonhando com uma carreira na Rede Globo.

22/9

O café da manhã do hotel não foi suficiente para a quantidade de hóspedes. É hora de partirmos para Imperatriz e começar a etapa do Maranhão da nossa viagem. São mais 300 quilômetros em direção ao Norte. Na divisa com Tocantins, uma enorme represa gera energia hidrelétrica das águas do Rio Tapajós. A cidade se divide entre Arturnópolis, do lado de Tocantins, e Esteio, no lado do Maranhão. A estrada é rodeada de torres de linha de transmissão de energia e de queimadas. Algumas vilas mais antigas à beira da estrada ainda guardam uma certa graça, com barracas de frutas e árvores já crescidas e cadeiras dispostas do lado de fora das casas. Já os centros maiores são de uma feiúra apavorante, com casas e galpões que se empilham uns sobre os outros, sem o menor critério de planejamento e de bem-estar.

Das barracas improvisadas voltamos para os palácios de mármore. Chegamos a Imperatriz e nosso hotel é bastante chique. Ele pertence a um shopping que foi inaugurado há dois anos na cidade e que está apoiando a nossa apresentação. O espetáculo será no estacionamento externo da enorme construção. Estamos em Imperatriz, na divisa dos estados de Tocantins e do Maranhão, cidade onde, na entrada, tem um portal anunciando que aqui é a entrada da Amazônia. Só que andar num shopping center é como estar em qualquer lugar do mundo. As pessoas insistem em se enquadrar num clichê como se tivessem vergonha de si mesmas, de suas identidades.

Noite dedicada ao encontro com grupos e artistas da cidade. O bate-papo é numa sala de cinema que acaba de ser aberta como centro cultural. Também está localizada num shopping center. Depois de uma breve exposição sobre a história e as principais características da trajetória do Galpão e a exposição do vídeo com cenas dos espetáculos, abrimos a conversa para o público. A pequena sala está lotada, com mais de 80 pessoas. Os sete grupos da cidade parecem viver rixas inconciliáveis. É impressionante como a classe teatral consegue viver e se alimentar de pequenas picuinhas e veleidades inúteis. Vivemos olhando para o nosso próprio rabo enquanto a vida nos atropela. Percebe-se claramente uma facção alfinetando a outra em determinadas falas. Guardando as devidas proporções, não creio que haja grandes diferenças num encontro da classe teatral em Belo Horizonte, Rio, São Paulo ou Nova York.

O dia termina com festa no caminhão do Bagre, que está estacionado na área externa do shopping.

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