Diário de ator e diretor do Grupo Galpão registra turnê de 'Os gigantes da montanha'

Registro por cidades de Tocantins, Maranhão e Pará revela um Brasil vivo, inteligente e interessado em bom teatro

por Eduardo Moreira 11/10/2014 06:00
Bia França/Divulgação
Montagem do palco para apresentação em Palmas, capital do Tocantins: cumprindo a sina mambembe de ir aonde o povo está (foto: Bia França/Divulgação)

Coerente com sua trajetória de apresentações e turnês que sempre buscam atender regiões alijadas dos chamados “circuitos culturais” do país, o Galpão acaba de retornar de uma temporada de seu último espetáculo, Os gigantes da montanha, de Luigi Pirandello (1867-1936), pela região da bacia do Rio Tocantins, abarcando cinco cidades dos estados de Tocantins, Maranhão e Pará. Em 11 dias de viagem, o Galpão celebrou o encontro da última obra do dramaturgo italiano com espectadores ávidos e que, em sua grande maioria, jamais haviam assistido a um espetáculo de teatro nas cidades de Palmas (TO), Araguaína (TO), Imperatriz (MA), Açailândia (MA) e Belém (PA).

Dezoito de setembro, começo da jornada. O Brasil é um país onde tudo fica centralizado. Estou a bordo de um voo que saiu de Aracaju. Preciso ir para Palmas, no Tocantins, primeiro destino de nossa turnê. Para cumprir o percurso é preciso descer até o Rio de Janeiro, daí viajar até Brasília e, só então, pegar um terceiro avião para a capital do Tocantins. Mais de cinco horas de voo num percurso, que poderia ser feito em duas.

Viajei a Aracaju para assistir à estreia do espetáculo Assim nasce um santo…, do grupo Boca de Cena. O grupo está promovendo um festival que é todo desenvolvido no Bairro do Bugio, zona periférica da cidade, onde o Boca de Cena tem sua sede. Escrevi o texto para eles, numa mistura de auto medieval, Gil Vicente e literatura de cordel. O grupo consegue uma comunicação muito efetiva com o público. As pessoas simples do bairro se divertem com as idiossincrasias e trejeitos do personagem do Diabo em disputa com o Anjo Gabriel, acerca da posse da alma do líder religioso João de Camargos, negro ex-escravo, que criou uma igreja e uma seita religiosa no século 19, na região de Sorocaba, interior de São Paulo.

O Boca de Cena é cria dos nossos queridos amigos do Grupo Imbuaça. Completa 9 anos de existência este ano e consegue mostrar uma articulação muito forte com a comunidade do bairro onde estão sediados. O grupo também tem uma bela sede aqui em Aracaju e realiza uma oficina com jovens atores, dirigida por Lindolfo. Cenas dos principais autores do teatro são estudadas e representadas pelos jovens atores. Atualmente, eles estão encarando as falas de Hamlet, de Shakespeare. O Imbuaça é um dos grupos que esteve junto ao Galpão na criação do Movimento de Teatro de Grupo, que foi um marco da organização de grupos de teatro no Brasil, na década de 1980.

Assim, apesar de todas as dificuldades, o teatro se move e sobrevive na cidade. Grupos se articulam e desenvolvem projetos de intercâmbio e de atividades junto às comunidades. Fim do trabalho, visitei o belo Museu da Gente Sergipana à beira do Rio Sergipe, no Centro da cidade, e, em seguida, almoço no simpático restaurante Arcabouço, no mercado de Aracaju. Próximo destino, Tocantins.

Dezenove de setembro. Chegada ao Tocantins. O estado nasceu da divisão de Goiás. Palmas é uma cidade planejada, criada em 1989. As distâncias são bem grandes e o caminho do aeroporto ao hotel está cheio de largas avenidas. Construída nos moldes de Brasília, com amplos lugares vazios, a cidade obedece à lógica pragmática das construções de caixote. Fico pensando no dinheiro que se empenhou para construir uma cidade tão espalhada e tão pouco ocupada. De dia, o sol é tão inclemente, que fica difícil percorrer suas longas distâncias. Ontem foi impossível encontrar uma única farmácia.

Nossa agenda está bem cheia. O dia começa com entrevistas para as televisões locais. Nossa divulgadora pede desculpas pelo fato de os repórteres não conhecerem bem o trabalho do Galpão. Nada mais natural. Na sequência, umas 30 pessoas estão presentes para ouvir sobre a história do grupo. É incrível como muitas delas dizem que o Galpão foi e é uma referência. Algumas já assistiram a espetáculos do grupo em Brasília, Goiânia e Rio de Janeiro. Os vídeos sobre teatro de rua, distribuídos pelo Inacem ao longo da década de 1980, foram amplamente mostrados e discutidos entre os grupos do interior mais profundo do Brasil.

As contínuas viagens do grupo, privilegiando regiões que estão fora do circuito cultural, também são um fator para estimular a empatia que nasce entre as pessoas e o trabalho do Galpão. A plateia, em sua grande maioria, composta por professores e alunos de teatro, mostra-se agradecida pelo fato de estarmos aqui, circulando por uma região normalmente tão esquecida.
Grupo Galpão
Apresentação em Açailândia: a maioria da plateia assistia a um espetáculo teatral pela primeira vez (foto: Grupo Galpão)

A apresentação está marcada para o centro cultural, no meio da Praça do Jacaré, que tem uma enorme escultura de pedra, com um formato do réptil. O camarim está montado num estranho vão metálico erguido no meio de uma paisagem um tanto desoladora. No horizonte, desponta uma esdrúxula réplica verde da Estátua da Liberdade, revelando nossa macaquice diante de um símbolo que não tem nada a ver conosco e com nossa cultura. Alguns pés de jambu – árvore também conhecida como azeitona-do-norte –, situados no fundo do cenário, ajudam a amenizar a fúria do sol. A passagem do som se arrasta sonolentamente. A temperatura elevada nos impõe um ritmo mais lento. Mil cadeiras estão espalhadas pelo espaço da plateia, fazendo com que algumas fileiras fiquem muito distantes do cenário. Será que teremos tanto público? Para nossa primeira visita, fica a dúvida, ainda que a receptividade ao encontro da manhã tenha sido superior às nossas expectativas.

Oito e meia da noite. Os últimos detalhes de maquiagem e de figurinos vão sendo arranjados e chega Helvécio anunciando que as cadeiras já estão quase todas tomadas. A notícia nos deixa mais aliviados. Acho que vamos passar no teste de Palmas. Talvez a parceria e a divulgação junto à Universidade do Tocantins tenham dado bons frutos. Nove e 10. Toninho esquece de colocar o microfone e somos obrigados a atrasar mais um pouco o início. Já na primeira música, aplausos entusiasmados. Toda a apresentação transcorre na mais absoluta atenção do público, que acompanha o espetáculo com inteligência e no mais absoluto silêncio. O resultado é surpreendente sob todos os aspectos. Pirandello chega ao Tocantins.

20/9


Oficina e ensaio aberto para alunos e professores da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Experimentamos pela primeira vez abrir um processo de ensaio para que interessados possam testemunhar. Lydia, Julio e Toninho dão alguns jogos e exercícios para os alunos na primeira parte do trabalho. Na sequência, ensaiamos uma fusão de músicas numa passagem do espetáculo, em palmas rítmicas, fazendo a transição entre as canções. O ritmo, além de muito básico, continua frouxo. O ensaio ainda poderia se arrastar por um bom tempo, mas as horas avançam e só nos resta parar e apresentar a primeira parte da peça. A apresentação sai dentro do esperado, com algumas correções e comentários que ajudam a caracterizar o espírito de um mero ensaio. Ao final, aplausos entusiasmados e generosos. Um rápido debate e é hora de correr para arrumar as malas no hotel, comer e partir para Araguaína, ainda em Tocantins.

Pegamos o retão da Belém-Brasília. A estrada é quase exclusivamente ocupada por caminhões. O rastro das queimadas está por toda parte e a secura junto à claridade do sol castiga as vistas. Quase 400 quilômetros precisam ser percorridos e a estrada não permite grandes velocidades. Nessas viagens pelo país, tenho sempre a sensação de um desperdício desenfreado de nossas fontes naturais. A região de Palmas é cercada de lagos (chamados de praias) que se originaram do represamento do Rio Tocantins. A cidade tem árvores que ainda não cresceram suficientemente.

Ao final do espetáculo, um rastro triste de lixo foi deixado para trás pelo público. Ainda temos um longo caminho de educação e de conscientização para atingirmos um grau mínimo de civilidade. Isso se reflete na nossa relação com a natureza, as matas, as águas, todos os recursos naturais. A impressão nítida que temos percorrendo a vastidão da rodovia é de que a terra está secando drasticamente e logo os recursos tenderão a escassear. E, pior ainda, ninguém parece efetivamente se preocupar muito com esse estado. Enquanto isso, carros de som com jingles assustadores fazem propaganda de políticos nem um pouco confiáveis. Será que o teatro pode contribuir, ainda que de forma ínfima, para lutar contra esse estado de insensatez que parece entorpecer a humanidade? Queremos acreditar que sim.

21/9

Estamos em Araguaína. A cidade é compacta, meio decadente, sem árvores e com ruas estreitas. Fundada há 45 anos, tem o aspecto de uma terra de ninguém, como se aqueles que aqui vivem não pertencessem a esse lugar. Pela manhã, realizamos um encontro com estudantes da UFT. Eles nos dizem que a população daqui foi formada por gente que migrou principalmente do Piauí, Maranhão e Pará. Os retirantes da esperança, numa espécie de Eldorado numa das fronteiras do Brasil. Aqui não existe escola de artes cênicas e nosso público é composto de jovens de seus 20 anos, estudantes de turismo, literatura e engenharia. A qualidade das perguntas e das questões levantadas é interessante, fugindo da especificidade das plateias iniciadas.

Como a companhia de Ilse de Os gigantes…, de Pirandello, dormimos nas estrebarias. O hotel é da fundação de Araguaína e sua construção lembra um presídio. O que incomoda num hotel ruim é, especialmente, a sujeira. A cidade é quente, de um calor que tira todas as nossas forças. Não há outra saída a não ser ficar entocado num quarto com ar- condicionado. Os restaurantes que frequentamos parecem pouco asseados. Há uma miscigenação de tipos humanos que é estranha e bela, numa mistura de negros, mulatos, cafuzos, mamelucos e brancos. O Brasil nos assusta e encanta. Um calor avassalador, uma sujeira que se espalha por todos os cantos, uma exuberância de árvores e frutas, um povo simpático, curioso e acolhedor, alheio a toda essa falta de organização e de estrutura.
Grupo Galpão
Preparação para mostrar Os gigantes da montanha em Araguaína: respeito que o público merece (foto: Grupo Galpão)

Nossa apresentação está marcada para a Praça São Luiz Orione, às 21h, de domingo. O horário não parece muito apropriado, mas vem de uma exigência da igreja, para que o espetáculo não interfira na dinâmica das missas. O padre não se mostra muito simpático à arte. As precárias condições de nossa hospedagem criam um misto de sentimento de revolta e de chacota entre os atores. Todos fazem piadas e alguns ficam sinceramente deprimidos. A precariedade torna-se inevitável e é impossível controlar a qualidade do apoio que vai surgir das prefeituras e das secretarias dessas cidades do interior de Tocantins. Hotéis e restaurantes de permuta quase sempre se tornam inevitáveis e armadilhas necessárias.

Vinte e uma horas e a praça está apinhada de gente. As mil cadeiras estão ocupadas e as laterais estão tomadas de pessoas de pé. Na música de abertura, a plateia fica coberta por flashes de celulares. J., o colunista social da cidade, atraído por nossas atrizes globais, está com seu iPhone na primeira fila, enviando torpedos. Um grupo de teatro da cidade, com seus componentes uniformizados, trouxe uma câmera e coleta depoimentos da nossa equipe. A hora avançada e a complexidade da trama da peça acabam dispersando uma boa parte da plateia. As pessoas parecem reagir com um misto de encantamento e de apatia.

Meia-noite e meia e a filha de 11 anos de um dos carregadores diz que quer ir embora com Inês e com Teuda. Diz que queria ter um “celular de maçãzinha” e quem sabe está sonhando com uma carreira na Rede Globo.

22/9

O café da manhã do hotel não foi suficiente para a quantidade de hóspedes. É hora de partirmos para Imperatriz e começar a etapa do Maranhão da nossa viagem. São mais 300 quilômetros em direção ao Norte. Na divisa com Tocantins, uma enorme represa gera energia hidrelétrica das águas do Rio Tapajós. A cidade se divide entre Arturnópolis, do lado de Tocantins, e Esteio, no lado do Maranhão. A estrada é rodeada de torres de linha de transmissão de energia e de queimadas. Algumas vilas mais antigas à beira da estrada ainda guardam uma certa graça, com barracas de frutas e árvores já crescidas e cadeiras dispostas do lado de fora das casas. Já os centros maiores são de uma feiúra apavorante, com casas e galpões que se empilham uns sobre os outros, sem o menor critério de planejamento e de bem-estar.

Das barracas improvisadas voltamos para os palácios de mármore. Chegamos a Imperatriz e nosso hotel é bastante chique. Ele pertence a um shopping que foi inaugurado há dois anos na cidade e que está apoiando a nossa apresentação. O espetáculo será no estacionamento externo da enorme construção. Estamos em Imperatriz, na divisa dos estados de Tocantins e do Maranhão, cidade onde, na entrada, tem um portal anunciando que aqui é a entrada da Amazônia. Só que andar num shopping center é como estar em qualquer lugar do mundo. As pessoas insistem em se enquadrar num clichê como se tivessem vergonha de si mesmas, de suas identidades.

Noite dedicada ao encontro com grupos e artistas da cidade. O bate-papo é numa sala de cinema que acaba de ser aberta como centro cultural. Também está localizada num shopping center. Depois de uma breve exposição sobre a história e as principais características da trajetória do Galpão e a exposição do vídeo com cenas dos espetáculos, abrimos a conversa para o público. A pequena sala está lotada, com mais de 80 pessoas. Os sete grupos da cidade parecem viver rixas inconciliáveis. É impressionante como a classe teatral consegue viver e se alimentar de pequenas picuinhas e veleidades inúteis. Vivemos olhando para o nosso próprio rabo enquanto a vida nos atropela. Percebe-se claramente uma facção alfinetando a outra em determinadas falas. Guardando as devidas proporções, não creio que haja grandes diferenças num encontro da classe teatral em Belo Horizonte, Rio, São Paulo ou Nova York.

O dia termina com festa no caminhão do Bagre, que está estacionado na área externa do shopping.
Grupo Galpão
Reunião com atores e estudantes em Palmas. Tempo para exercícios e debate sobre o teatro no Brasil (foto: Grupo Galpão)

23/9


Acordamos cedo para poder dar um mergulho no Rio Tocantins. As praias começam a ficar alagadas pela enchente do rio. A represa de Esteio, quando aberta, faz com que o nível das águas suba de uma hora para outra. Os ribeirinhos estão em fase de desmonte das barracas que ficam na beirada do rio. Terminado o período da seca, tudo será alagado, num ciclo de eterno retorno da natureza. Na área em que pegamos o barco existe um bairro extremamente pobre, que praticamente todos os verões é alagado pelo Tocantins na época das chuvas. A cena se repete todos os anos: as pessoas deixam suas casas miseráveis, recebem uma indenização miserável do poder público e, logo em seguida, voltam para o mesmo local. E assim segue a vida do brasileiro, sem maiores ambições, vivendo de um biscate daqui, um bolsa-família dali e uma indenização de acolá.

O rio é generoso. A temperatura de suas águas, temperada. Apesar de todo o seu volume, boa parte da cidade não tem água tratada e rede de saneamento básico. Algumas pessoas se referem ao Maranhão como a “Sarneylândia”. Pela manhã, vamos às entrevistas agendadas para as televisões locais. A Mirante, da Globo, pertence à família Sarney; a Difusora, do SBT, pertence à família de Édson Lobão. O ciclo se fecha e é difícil pensar em saídas diversas e críticas para a nossa precária democracia social. No almoço, vamos a uma tradicional peixaria da cidade saborear uma moqueca do peixe conhecido como filhote, acompanhada com o delicioso arroz de cuchá.

À tarde começa a chover. O calor alivia, mas a preocupação agora passa a ser a realização do espetáculo. Na enorme área do estacionamento, nosso cenário parece acanhado e triste diante da chuva insistente. Já bem próximo do horário previsto, o tempo se firma e 15 minutos antes das 20h, as mil cadeiras já estão tomadas. Oito e cinco e nos dirigimos para o cenário, onde todas as laterais estão apinhadas de gente e a entrada do shopping tem um grupo grande de pessoas.

O público assiste com atenção e no mais absoluto silêncio à fábula de Pirandello. A nave de sonhos composta pelas mesas de nosso cenário parece suspender o tempo e criar um vácuo de delírio e de imaginação naquele templo árido de consumo. O mundo daquelas pessoas e de todos nós parece entrar num outro registro. A magia do teatro se instaura e logo desaparece num piscar de olhos. Hora de tirar fotos com as pessoas do público. Depois, limpar a maquiagem, recolher os figurinos, arrumar baús e colocá-los na carreta do Bagre, que seguirá para nosso próximo destino, a cidade de Açailândia, a segunda do Maranhão de nossa turnê.

Como ninguém é de ferro, terminamos a noite na beira do Rio Tocantins tomando a cerveja Tijuca de Belém e comendo iscas de peixe.

24/9

Pausa para a reflexão numa manhã de folga no hotel. As mulheres se dedicam à academia de fitness. Os homens ficam mais recolhidos. O dia está reservado para uma viagem de 65 quilômetros e a apresentação em Açailândia. Estivemos na região em 2001, quando fizemos uma excursão por cidades que eram e são rota de atividade da Vale do Rio Doce. A viagem na época incluiu Carajás, Marabá, Açailândia e São Luís. O que mais nos impressionou nessa primeira visita foi o esgoto correndo livre pelas ruas. O quadro de miséria era assustador. Hoje, entrando na cidade, percebe-se que ela se modernizou. As ruas ganharam pavimentação. O comércio cresceu, tudo parece mais urbanizado. O Centro continua bem feio, com uma profusão alucinante de propagandas. O barulho dos carros de som é ensurdecedor. Chegamos ao hotel, que fica a uma quadra do local da apresentação. A Praça do Pioneiro foi o local escolhido, bem no Centro da cidade. A praça tem uma decoração kitsch, com esculturas de árvores cortadas que formam canteiros, bancos e dão contorno a uma fonte, com a água horrivelmente suja.

Nosso camarim foi montado numa escola pública situada na rua paralela à praça. Cartazes sobre a corrupção e as drogas estão afixados nas paredes de nosso camarim improvisado. Percebe-se que existe um cuidado e um amor àquilo que é feito pelos professores e pela direção da escola. Com toda a falta de apoio, existe uma dignidade dos educadores e dos responsáveis pela educação no Brasil, que me comove. Há que ter idealismo para encarar a dura realidade das escolas e do magistério no Brasil. Enquanto toco clarinete na rua, um músico da igreja se aproxima e diz que toca clarim. Ele quer assistir ao espetáculo, mas vai chegar um pouco atrasado porque tem aula de inglês e precisa se aprimorar na língua para tentar um mestrado. Meninos uniformizados se aproximam de Inês para tirar fotos. A passagem de som cria um rebuliço na praça, fazendo uma espécie de divulgação avant l’espectacle. Lydia pede que refaçamos algumas partes dos diálogos que saíram um pouco ralentados na apresentação anterior. O trabalho do teatro é inacabável. Uma TV chega solicitando entrevistas. Há um clima de curiosidade no semblante das pessoas que passam pela praça.

Vinte horas. A praça está lotada e as imediações do cenário e das cadeiras reservadas ao público estão cercadas de barracas que vendem cervejas, sanduíches, cachorro-quente e pipoca. O espaço transformou-se numa verdadeira quermesse. Calculamos em aproximadamente 3 mil as pessoas que estão em volta do espetáculo, uma multidão ruidosa que fala alto e bebe. O centro da plateia está bem atento, mas o ruído da periferia interfere. É preciso segurar a ansiedade e não cair na armadilha de querer falar mais alto e acabar gritando. O calor é intenso e estamos no limite das nossas forças. Ao final, muitas fotos e o sorriso agradecido das pessoas, que parecem não estar acreditando que foram contempladas com aquele teatro.

Desmontagem ao som de uma dupla sertaneja que canta num bar da praça e do jogo do Flamengo, no quiosque de cerveja. No meio de rubro-negros e poucos vascaínos torcendo contra, assistimos ao empate com o São Paulo.
Grupo Galpão
Como todo espetáculo que se preza em tempos de redes sociais, pausa para tirar fotos com o público (foto: Grupo Galpão)

25/9

Encontro e bate-papo com atores e alguns interessados em Açailândia. O local é a escola pública Carrossel. Estamos na cidade com menor população da turnê e o número de participantes é pequeno. Estão presentes grupos de dança e de folclore. Eles nos relatam sua realidade e falam que a cidade está com muitos casos de doenças pulmonares causadas pela poluição das siderúrgicas da região. Aqui vivem cerca de 35 mil habitantes. Ao contrário de Imperatriz, não existe um sentido de comunidade entre as pessoas. Parece uma cidade de forasteiros que vieram ganhar a vida e não reconhecem no lugar sua identidade. Por aqui passa a Ferrovia Norte-Sul, que escoa a produção de minério da Vale até o porto próximo a São Luís. Todos dizem que ficaram emocionados em ver a cidade toda mobilizada pela apresentação. É uma espécie de vitória também para eles que são os representantes do teatro junto à comunidade. Açailândia não tem teatro e as perspectivas de um dia chegar a ter parecem remotas. Sua fundação foi feita há menos de 40 anos e deixou um rastro de destruição das madeireiras.

À tarde, vamos tomar um banho de rio numa espécie de balneário com uma construção árida, tomada de cimento e com um telhado de zinco pavoroso. No meio da área represada e cimentada do rio, mesas e cadeiras são dispostas. Como não poderia deixar de ser, uma enorme televisão domina o lugar central do galpão de zinco onde funciona o restaurante. Tudo ali parece atentar contra o desfrute e o contato com a natureza.

No caminho de volta, vemos enormes siderúrgicas rodeadas por casebres miseráveis. A atividade extrativista no Brasil gera um entorno de pobreza assustadora. Crianças sem camisa e descalças exibem seus corpos esquálidos e suas barrigas estufadas. Um triste contraponto às escolas públicas simples e bem cuidadas que encontramos em nossa breve estadia na cidade.

26/9

Chegamos a Belém e vamos diretamente para o hotel, que está situado na Presidente Vargas, quase em frente à Praça da República, bem no Centro da cidade. Agora é correr contra o tempo e dormir algumas horas para estar pronto para o espetáculo da noite. Acordo por volta do meio-dia e corro para um programa de entrevista na TV Cultura. Esperando a hora de entrar no estúdio, assisto a 20 minutos de um programa ótimo sobre a cidade de Bragança, que produz uma farinha famosa no Pará. A TV pública do Pará dá de 10 na de Minas. Aqui parece que realmente existe uma TV pública preocupada em divulgar a cultura local, coisa que nunca se concretizou em Minas e que, nos últimos anos, foi definitivamente enterrada. Uma pena! O programa, chamado Sem censura, tem os mesmos moldes da TV Brasil, apresentado pela Leda Nagle, e é ótimo. Promove um encontro com jornalistas bem-informados e dá tempo de responder às questões inteligentes, sem aquela pressa neurótica das televisões comerciais.

Final da tarde e o tempo muda. Começa a chover e as pessoas dizem que é melhor que caia logo um forte temporal para que a chuva passe. Ela estia e às 19h30 a praça já está com todas as cadeiras tomadas. Existe um clima de expectativa pela estreia do Galpão na cidade. É a primeira vez que o grupo vai se apresentar aqui. Quando estamos maquiados, aquecidos e fazendo os últimos ajustes de contrarregragem, a chuva vem forte de novo. O público se dispersa, abrigando-se nas marquises em volta da praça. É preciso proteger principalmente a aparelhagem de som e os figurinos, instrumentos e objetos de cena. A correria de técnicos, atores e produção se alastra pelo espaço. A chuva vai e volta. O público volta, seca as cadeiras, logo em seguida sai correndo de novo, fugindo de outra pancada d’água. Ficamos nessa labuta até 21h45, quando nos demos por vencidos pelo temporal. Fica adiada nossa estreia em Belém.

A noite termina meio amuada, com cerveja e farinha com pirarucu seco nos bares das docas, à beira da Baía de Guama.
Grupo Galpão
Em Imperatriz, no Maranhão, o Galpão estende seu estandarte na porta de entrada da Amazônia (foto: Grupo Galpão)

27/9


As Docas fazem parte do projeto urbanístico que mais impulsionou o turismo em Belém. Os galpões do antigo porto da cidade, que fica ao lado do Mercado Ver-o-Peso, foram transformados em um enorme complexo de restaurantes e de lojas de artesanato e roupas. O lugar é muito simpático e faz parte de um esforço de abrir a cidade para o rio. Por mais estranho que pareça, Belém sempre deu as costas para o rio. Só mais recentemente, projetos como o das Docas e a abertura de uma avenida larga com pistas de corrida e aparelhos de ginástica, chamada “Portal da Amazônia”, tem voltado a cidade para a baía. O projeto das docas, considerado muito chique, acabou criticado por parte da esquerda da cidade, que o considera elitista e o denomina pejorativamente de “dondocas”, uma vez que ele é cercado e frequentado exclusivamente pela elite da cidade e por turistas. A crítica me parece exagerada, ainda que seja mesmo estranha a separação que existe entre o Ver-o-Peso (o mercado popular dos pobres) e as lojas e restaurantes das alamedas das Docas. O aceso é vedado pelas grades de um sólido portão de grades. Coisas do nosso apartheid brasileiro, em que as elites fazem questão de estar o mais distante possível do povo.

A manhã está dedicada ao encontro com a classe teatral da cidade no Teatro Waldermar Henrique, um tradicional reduto do setor. Mais de 50 atores estão presentes. Fazemos um bate-papo, uma sequência de exercícios teatrais e mostramos parte do ensaio do novo trabalho. O encontro termina com a exibição do vídeo do Galpão e muitas fotos. Ciceroneados pelo simpático Marton Emaus, professor e diretor do grupo Palhaços Ambulantes, fazemos uma visita ao Teatro da Paz e à sede do grupo, próximos à Praça da República. Daí seguimos para uma caldeirada de filhote (um dos peixes mais típicos da região) nas docas e um rápido tour por alguns pontos turísticos do Centro Histórico de Belém. A cidade é uma joia que, como outras tantas no Brasil – o Centro do Rio, Salvador e Recife –, está com o casario caindo aos pedaços. É uma pena.

A Praça da Bandeira, uma zona militar rodeada de prostíbulos e casas noturnas de má reputação, se enche de pessoas jovens e alternativas. Umas 1,5 mil pessoas se espalham em frente e ao redor do cenário. A apresentação se transforma num encontro pacífico e encantado de pessoas que esqueceram suas diferenças e ressentimentos por um breve período de tempo. Todos ali tornam-se iguais, na instauração de uma utopia em que se misturam estudantes, jovens de classe média, prostitutas, trabalhadores, gente simples e intelectuais e artistas, numa vibração que só a arte é capaz de promover. A cidade parece concretizar a sua verdadeira vocação de reunir as pessoas no espaço público e não de separá-las com muros, cercas e interdições. Lavamos a alma, ainda que pelo tênue momento de uma única apresentação. A brisa sopra sobre a cidade e as pessoas parecem flanar mais leves entre as mangueiras da praça. Para nós também sopra uma lufada de alívio e de sensação do dever cumprido. Finalmente, conseguimos realizar o sonho de nos apresentar em Belém, cidade que nunca havia sido visitada pelo Galpão em seus 32 anos de existência.

28/9

Dia de descanso e lazer. Visitamos a Ilha do Combu, onde temos uma reserva no aprazível Restaurante Saudosa Maloca. Ainda temos tempo de assistir a um documentário sobre Marguerite Duras, a escritora e cineasta francesa, no famoso Cinema Olympia, fundado em 1912. Ele é hoje o cinema de rua mais antigo do Brasil em funcionamento.

29/9

Compras de última hora no Mercado Ver-o-Peso. O mercado é uma pérola da cultura popular brasileira e paraense, com uma enorme quantidade de barracas de comidas, artesanato, plantas e óleos medicinais, numa apoteose do nosso sincretismo cultural, síntese do encontro da cultura indígena da Amazônia com nossas raízes africanas e europeias.

Eduardo Moreira é ator do Grupo Galpão.

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