Vida, modo de usar

Roteirista e contista, Antonia Pellegrino estreia no romance com Cem ideias que deram em nada, livro que lança mão de múltiplas formas de expressão para explorar a realidade contemporânea

por 11/10/2014 00:13
Vicente de Paula/Divulgação
Vicente de Paula/Divulgação (foto: Vicente de Paula/Divulgação )
João Paulo

Há romancistas que andam em busca de personagens, outros de ideias e ainda os que sideram em torno da linguagem. Antonia Pellegrino faz as três viagens ao mesmo tempo em seu romance de estreia, Cem ideias que deram em nada (Editora Foz). A circunstância inaugural não é um acaso: a escritora é uma experiente roteirista de cinema e TV, publicou contos e crônicas e organizou a coletânea Lucidez embriagada, com textos do avô, o psicanalista Hélio Pellegrino. Mas romance é outra história. Outras histórias.
Cem ideias que deram em nada, como entrega o título, tem o signo inicial da demasia. Afinal 100 histórias em busca de uma autora. Mas logo tudo se desmancha na constatação de que seriam ideias que não chegaram a ser. Mais que falência das intenções, parece se tratar de uma afirmação de que a realização é menos importante que o projeto. Antonia integra um tempo de gente que parece sempre em busca da próxima estação, do capítulo seguinte da existência. Em vez de emprego, jobs; no lugar do romance, 100 ideias. Todos hoje têm um projeto em exame. Na verdade, o que importa é sempre o próximo. A vida, ao menos sua consagração, nada mais é que um gozo adiado que se esparrama em possibilidades. Entre ser e não ser: sendo.

A estrutura do romance é explícita: pequenos capítulos numerados de um a 100, cada um deles com um esboço de romance possível, que vai de uma linha a algumas páginas. Em certos casos são contos, em outros, momentos de epifanias, seguindo-se todo tipo de texto: lista de compras, manifesto de boas intenções, reflexões, poemas, definições, trechos escandidos de um livro imaginado, documentos formais, sinopses, diários, troca de mensagens, roteiros. A primeira indicação é que se trata de algo da ordem do excesso, que passaria com o tempo pelo saudável crivo da sedimentação, com vistas à realização. Potência e ato. Como as ideias se superpõem, esse intento aristotélico fica contido na feição do próprio livro, que vai se formando na cabeça do leitor. As ideias se contam às dezenas, mas o livro é um só.

A autora, ao ser tomada pela provocação pós-moderna do fragmento (sem perder a capacidade de rir de si mesma e criticar a armadilha que ela mesmo prepara com cuidado), dispõe, em sua multiplicidade latente, de uma pletora de técnicas e intenções. As ideias podem ser engraçadas, argutas, patéticas, ridículas e líricas. Em cada um dos registros há leitores aptos a se identificar, mas que, como é próprio da ética do descarte que parece tocar o romance, preferem virar a página e deixar tudo como está. Fica o estranhamento, a fratura, o mal-estar, o que é um mérito e tanto para quem está acostumado a virar o rosto rápido para qualquer tipo de constrangimento. A ideia seguinte pode limpar a barra, mas pode dar uma volta a mais no parafuso.

O jogo que a prosa mutante de Antonia Pellegrino oferece ao leitor é feito de concentração e dispersão. Há uma força compacta que parece se esforçar para escrever um romance, como se a vida pudesse ser captada num único signo; e uma energia centrífuga que remete tudo para um tempo futuro, para um depois permanente, que remata nossa falta de foco em meio às provocações inumeráveis que nos comandam o destino. Algo como a lógica do consumo, que promete o prazer a partir da frustração renovada. Não se pode ter tudo, mas o desejo é insaciável, conspícuo, exibido.

Personagem Se no campo das ideias e da linguagem Antonia Pellegrino dá ao leitor o sem-lugar do múltiplo, nem por isso deixa de existir um núcleo de onde tudo irradia. E é do coração do livro que surge um personagem, que pode ser a narradora ou suas várias emanações, mas que na verdade é resultado de um olhar sempre reflexivo sobre a realidade. Nem mesmo a ironia, com sua força dissolvente, tira certa entrega dessas ideias frustras. Até a velocidade, que acelera a operação de desprezo e empurra a leitura adiante, não é suficiente para esconder certos momentos de autêntico desejo e algum brilho intelectual inequívoco.

Cada leitor vai eleger suas ideias favoritas. Podem ser as que desconstroem o mundo da arte contemporânea, com suas mitificações ridículas; as que escarnecem do destino trágico da própria geração-projeto, em sua busca circular do próprio umbigo; ou ainda aquelas que fazem do homem e da mulher um arremedo de algo que ainda não existe (e que não vai existir nunca), que deixa a melancólica sensação de que estar é ser.

Mas Antonia também oferece certo consolo, com histórias mais doces, destinos menos ambiciosos, emoções mais tranquilas. E nada se dá no oco do mundo. O contexto político está presente o tempo todo, seja como contingência, circunstância ou mesmo subtexto que brota da atitude de alguns personagens. E há ainda certo erotismo, meio enviesado, por vezes forte, outras apenas pressentido.


Em alguns momentos, com poucas palavras, a autora parece de fato escrever um romance com uma única frase ou poucos versos. O registro epifânico é arte de roteirista – que projeta um filme na cabeça do leitor – mas é realização de poeta.


Como em “Ideia de catecismo: Rezava para dormir, hoje se masturba.” Ou ainda, “Ideia de saudades: Destrinchando um frango, lembrei de você.” E, para terminar, “Ideia de separação: “Últimas palavras: quero não precisar mais mentir./ Último gesto de amor: ter-me transmitido cândida./ Cândida é o nome de sua mentira a proliferar-se em mim”.


No fim da leitura fica boiando a pergunta menos importante de todas, mas inevitável: qual será o próximo projeto?. Não interessa. Se tudo correr bem, também não vai dar em nada.

 

CEM IDEIAS QUE DERAM EM NADA
Antonia  Pellegrino
Editora Foz, 160 páginas,
R$ 38,90
 

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