No começo era o amor

por 11/10/2014 00:13
Daryan Dornelles/Divulgação
Daryan Dornelles/Divulgação (foto: Daryan Dornelles/Divulgação )
João Paulo

Adriana Falcão sempre foi uma boa contadora de histórias. Maneja com igual cuidado e sensibilidade as palavras faladas das peças de teatro e filmes, e as palavras escritas de suas histórias para jovens e adultos. Em todos os momentos, é sempre possível sentir sua presença por meio de um estilo amorável, um jeito de contar e recontar com pequenas diferenças os mesmos fatos (uma sutil arte do deslocamento), pela capacidade de instilar fantasia na realidade sem que pareça algo estranho. Ela brinca bem com o tempo, o espaço e a linguagem. Foi assim com a novela A máquina, por exemplo, que se desdobrou em peça e filme, gerando três obras diferentes, todas encantadoras.


Seu primeiro livro de não ficção, Queria ver você feliz, se vale da mesma delicadeza, mas com uma força diferente. Não se trata apenas de uma história real – a vida de Caio e Maria Augusta, pais de Adriana –, mas de uma memória cheia de marcas duras, tristezas e silêncios. Adriana escolheu um narrador inusitado para sua saga familiar: quem conta a história é o Amor. O sentimento se personifica, assume a palavra, como se fosse um desdobramento de Eros, e passa a alinhavar os fatos que Adriana tem em mãos.


O livro é composto de fragmentos da correspondência entre Caio e Maria Augusta desde a juventude, que vão sendo apresentados de modo a formar um painel cada vez mais complexo. O próprio Amor se apresenta como um “perfeccionista obcecado”, que parece nutrir uma predileção por seu casal. Tudo começa como uma crônica de época, com o despertar do desejo, a descoberta do mundo, a construção banal do destino do casal que se ama. O Amor, quando intervém, apenas regula o fluxo aparentemente tranquilo da felicidade que se adivinha.


Mas Caio e Maria Augusta são pessoas de sentimentos fortes e complexos. Um pequeno desequilíbrio é capaz de tornar a paixão em ciúme, o cuidado em obsessão, a tristeza em melancolia. A vida vai também espalhando suas pequenas e grandes tragédias, com muitas perdas. Com delicadeza e sem julgamentos, a narrativa conduzida pelo Amor deixa perceber o germe da desrazão, quase um outro, que chega para ameaçar de vez a vida do casal. Adriana, falando do pai e da mãe, expõe o difícil tema da convivência com a loucura, as internações, a luta pela recuperação da dignidade, a cor pálida da depressão, a fragilidade do desejo de viver.


Toda a beleza do livro está no cuidado em não se perder a emoção por excesso de lucidez nem mergulhar na autocomiseração. Queria ver você feliz é uma história de amor com final dramático. Mas dela emana um felicidade real, feita de momentos sempre prestes a se desfazer. Adriana Falcão convocou o Amor para se ver livre para narrar sua história em segunda pessoa. É para ela que o livro vai sendo escrito, aos poucos, com muito medo de chegar ao fim.

 


QUERIA VER VOCÊ FELIZ
Adriana Falcão
Editora Intrínseca, 160 páginas, R$ 29,90

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