Caminhos da arte e da vida (continuação)

por 11/10/2014 00:13
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23/9


Acordamos cedo para poder dar um mergulho no Rio Tocantins. As praias começam a ficar alagadas pela enchente do rio. A represa de Esteio, quando aberta, faz com que o nível das águas suba de uma hora para outra. Os ribeirinhos estão em fase de desmonte das barracas que ficam na beirada do rio. Terminado o período da seca, tudo será alagado, num ciclo de eterno retorno da natureza. Na área em que pegamos o barco existe um bairro extremamente pobre, que praticamente todos os verões é alagado pelo Tocantins na época das chuvas. A cena se repete todos os anos: as pessoas deixam suas casas miseráveis, recebem uma indenização miserável do poder público e, logo em seguida, voltam para o mesmo local. E assim segue a vida do brasileiro, sem maiores ambições, vivendo de um biscate daqui, um bolsa-família dali e uma indenização de acolá.

O rio é generoso. A temperatura de suas águas, temperada. Apesar de todo o seu volume, boa parte da cidade não tem água tratada e rede de saneamento básico. Algumas pessoas se referem ao Maranhão como a “Sarneylândia”. Pela manhã, vamos às entrevistas agendadas para as televisões locais. A Mirante, da Globo, pertence à família Sarney; a Difusora, do SBT, pertence à família de Édson Lobão. O ciclo se fecha e é difícil pensar em saídas diversas e críticas para a nossa precária democracia social. No almoço, vamos a uma tradicional peixaria da cidade saborear uma moqueca do peixe conhecido como filhote, acompanhada com o delicioso arroz de cuchá.

À tarde começa a chover. O calor alivia, mas a preocupação agora passa a ser a realização do espetáculo. Na enorme área do estacionamento, nosso cenário parece acanhado e triste diante da chuva insistente. Já bem próximo do horário previsto, o tempo se firma e 15 minutos antes das 20h, as mil cadeiras já estão tomadas. Oito e cinco e nos dirigimos para o cenário, onde todas as laterais estão apinhadas de gente e a entrada do shopping tem um grupo grande de pessoas.

O público assiste com atenção e no mais absoluto silêncio à fábula de Pirandello. A nave de sonhos composta pelas mesas de nosso cenário parece suspender o tempo e criar um vácuo de delírio e de imaginação naquele templo árido de consumo. O mundo daquelas pessoas e de todos nós parece entrar num outro registro. A magia do teatro se instaura e logo desaparece num piscar de olhos. Hora de tirar fotos com as pessoas do público. Depois, limpar a maquiagem, recolher os figurinos, arrumar baús e colocá-los na carreta do Bagre, que seguirá para nosso próximo destino, a cidade de Açailândia, a segunda do Maranhão de nossa turnê.

Como ninguém é de ferro, terminamos a noite na beira do Rio Tocantins tomando a cerveja Tijuca de Belém e comendo iscas de peixe.

24/9

Pausa para a reflexão numa manhã de folga no hotel. As mulheres se dedicam à academia de fitness. Os homens ficam mais recolhidos. O dia está reservado para uma viagem de 65 quilômetros e a apresentação em Açailândia. Estivemos na região em 2001, quando fizemos uma excursão por cidades que eram e são rota de atividade da Vale do Rio Doce. A viagem na época incluiu Carajás, Marabá, Açailândia e São Luís. O que mais nos impressionou nessa primeira visita foi o esgoto correndo livre pelas ruas. O quadro de miséria era assustador. Hoje, entrando na cidade, percebe-se que ela se modernizou. As ruas ganharam pavimentação. O comércio cresceu, tudo parece mais urbanizado. O Centro continua bem feio, com uma profusão alucinante de propagandas. O barulho dos carros de som é ensurdecedor. Chegamos ao hotel, que fica a uma quadra do local da apresentação. A Praça do Pioneiro foi o local escolhido, bem no Centro da cidade. A praça tem uma decoração kitsch, com esculturas de árvores cortadas que formam canteiros, bancos e dão contorno a uma fonte, com a água horrivelmente suja.

Nosso camarim foi montado numa escola pública situada na rua paralela à praça. Cartazes sobre a corrupção e as drogas estão afixados nas paredes de nosso camarim improvisado. Percebe-se que existe um cuidado e um amor àquilo que é feito pelos professores e pela direção da escola. Com toda a falta de apoio, existe uma dignidade dos educadores e dos responsáveis pela educação no Brasil, que me comove. Há que ter idealismo para encarar a dura realidade das escolas e do magistério no Brasil. Enquanto toco clarinete na rua, um músico da igreja se aproxima e diz que toca clarim. Ele quer assistir ao espetáculo, mas vai chegar um pouco atrasado porque tem aula de inglês e precisa se aprimorar na língua para tentar um mestrado. Meninos uniformizados se aproximam de Inês para tirar fotos. A passagem de som cria um rebuliço na praça, fazendo uma espécie de divulgação avant l’espectacle. Lydia pede que refaçamos algumas partes dos diálogos que saíram um pouco ralentados na apresentação anterior. O trabalho do teatro é inacabável. Uma TV chega solicitando entrevistas. Há um clima de curiosidade no semblante das pessoas que passam pela praça.

Vinte horas. A praça está lotada e as imediações do cenário e das cadeiras reservadas ao público estão cercadas de barracas que vendem cervejas, sanduíches, cachorro-quente e pipoca. O espaço transformou-se numa verdadeira quermesse. Calculamos em aproximadamente 3 mil as pessoas que estão em volta do espetáculo, uma multidão ruidosa que fala alto e bebe. O centro da plateia está bem atento, mas o ruído da periferia interfere. É preciso segurar a ansiedade e não cair na armadilha de querer falar mais alto e acabar gritando. O calor é intenso e estamos no limite das nossas forças. Ao final, muitas fotos e o sorriso agradecido das pessoas, que parecem não estar acreditando que foram contempladas com aquele teatro.

Desmontagem ao som de uma dupla sertaneja que canta num bar da praça e do jogo do Flamengo, no quiosque de cerveja. No meio de rubro-negros e poucos vascaínos torcendo contra, assistimos ao empate com o São Paulo.



25/9

Encontro e bate-papo com atores e alguns interessados em Açailândia. O local é a escola pública Carrossel. Estamos na cidade com menor população da turnê e o número de participantes é pequeno. Estão presentes grupos de dança e de folclore. Eles nos relatam sua realidade e falam que a cidade está com muitos casos de doenças pulmonares causadas pela poluição das siderúrgicas da região. Aqui vivem cerca de 35 mil habitantes. Ao contrário de Imperatriz, não existe um sentido de comunidade entre as pessoas. Parece uma cidade de forasteiros que vieram ganhar a vida e não reconhecem no lugar sua identidade. Por aqui passa a Ferrovia Norte-Sul, que escoa a produção de minério da Vale até o porto próximo a São Luís. Todos dizem que ficaram emocionados em ver a cidade toda mobilizada pela apresentação. É uma espécie de vitória também para eles que são os representantes do teatro junto à comunidade. Açailândia não tem teatro e as perspectivas de um dia chegar a ter parecem remotas. Sua fundação foi feita há menos de 40 anos e deixou um rastro de destruição das madeireiras.

À tarde, vamos tomar um banho de rio numa espécie de balneário com uma construção árida, tomada de cimento e com um telhado de zinco pavoroso. No meio da área represada e cimentada do rio, mesas e cadeiras são dispostas. Como não poderia deixar de ser, uma enorme televisão domina o lugar central do galpão de zinco onde funciona o restaurante. Tudo ali parece atentar contra o desfrute e o contato com a natureza.

No caminho de volta, vemos enormes siderúrgicas rodeadas por casebres miseráveis. A atividade extrativista no Brasil gera um entorno de pobreza assustadora. Crianças sem camisa e descalças exibem seus corpos esquálidos e suas barrigas estufadas. Um triste contraponto às escolas públicas simples e bem cuidadas que encontramos em nossa breve estadia na cidade.

26/9

Chegamos a Belém e vamos diretamente para o hotel, que está situado na Presidente Vargas, quase em frente à Praça da República, bem no Centro da cidade. Agora é correr contra o tempo e dormir algumas horas para estar pronto para o espetáculo da noite. Acordo por volta do meio-dia e corro para um programa de entrevista na TV Cultura. Esperando a hora de entrar no estúdio, assisto a 20 minutos de um programa ótimo sobre a cidade de Bragança, que produz uma farinha famosa no Pará. A TV pública do Pará dá de 10 na de Minas. Aqui parece que realmente existe uma TV pública preocupada em divulgar a cultura local, coisa que nunca se concretizou em Minas e que, nos últimos anos, foi definitivamente enterrada. Uma pena! O programa, chamado Sem censura, tem os mesmos moldes da TV Brasil, apresentado pela Leda Nagle, e é ótimo. Promove um encontro com jornalistas bem-informados e dá tempo de responder às questões inteligentes, sem aquela pressa neurótica das televisões comerciais.

Final da tarde e o tempo muda. Começa a chover e as pessoas dizem que é melhor que caia logo um forte temporal para que a chuva passe. Ela estia e às 19h30 a praça já está com todas as cadeiras tomadas. Existe um clima de expectativa pela estreia do Galpão na cidade. É a primeira vez que o grupo vai se apresentar aqui. Quando estamos maquiados, aquecidos e fazendo os últimos ajustes de contrarregragem, a chuva vem forte de novo. O público se dispersa, abrigando-se nas marquises em volta da praça. É preciso proteger principalmente a aparelhagem de som e os figurinos, instrumentos e objetos de cena. A correria de técnicos, atores e produção se alastra pelo espaço. A chuva vai e volta. O público volta, seca as cadeiras, logo em seguida sai correndo de novo, fugindo de outra pancada d’água. Ficamos nessa labuta até 21h45, quando nos demos por vencidos pelo temporal. Fica adiada nossa estreia em Belém.

A noite termina meio amuada, com cerveja e farinha com pirarucu seco nos bares das docas, à beira da Baía de Guama.



27/9


As Docas fazem parte do projeto urbanístico que mais impulsionou o turismo em Belém. Os galpões do antigo porto da cidade, que fica ao lado do Mercado Ver-o-Peso, foram transformados em um enorme complexo de restaurantes e de lojas de artesanato e roupas. O lugar é muito simpático e faz parte de um esforço de abrir a cidade para o rio. Por mais estranho que pareça, Belém sempre deu as costas para o rio. Só mais recentemente, projetos como o das Docas e a abertura de uma avenida larga com pistas de corrida e aparelhos de ginástica, chamada “Portal da Amazônia”, tem voltado a cidade para a baía. O projeto das docas, considerado muito chique, acabou criticado por parte da esquerda da cidade, que o considera elitista e o denomina pejorativamente de “dondocas”, uma vez que ele é cercado e frequentado exclusivamente pela elite da cidade e por turistas. A crítica me parece exagerada, ainda que seja mesmo estranha a separação que existe entre o Ver-o-Peso (o mercado popular dos pobres) e as lojas e restaurantes das alamedas das Docas. O aceso é vedado pelas grades de um sólido portão de grades. Coisas do nosso apartheid brasileiro, em que as elites fazem questão de estar o mais distante possível do povo.

A manhã está dedicada ao encontro com a classe teatral da cidade no Teatro Waldermar Henrique, um tradicional reduto do setor. Mais de 50 atores estão presentes. Fazemos um bate-papo, uma sequência de exercícios teatrais e mostramos parte do ensaio do novo trabalho. O encontro termina com a exibição do vídeo do Galpão e muitas fotos. Ciceroneados pelo simpático Marton Emaus, professor e diretor do grupo Palhaços Ambulantes, fazemos uma visita ao Teatro da Paz e à sede do grupo, próximos à Praça da República. Daí seguimos para uma caldeirada de filhote (um dos peixes mais típicos da região) nas docas e um rápido tour por alguns pontos turísticos do Centro Histórico de Belém. A cidade é uma joia que, como outras tantas no Brasil – o Centro do Rio, Salvador e Recife –, está com o casario caindo aos pedaços. É uma pena.

A Praça da Bandeira, uma zona militar rodeada de prostíbulos e casas noturnas de má reputação, se enche de pessoas jovens e alternativas. Umas 1,5 mil pessoas se espalham em frente e ao redor do cenário. A apresentação se transforma num encontro pacífico e encantado de pessoas que esqueceram suas diferenças e ressentimentos por um breve período de tempo. Todos ali tornam-se iguais, na instauração de uma utopia em que se misturam estudantes, jovens de classe média, prostitutas, trabalhadores, gente simples e intelectuais e artistas, numa vibração que só a arte é capaz de promover. A cidade parece concretizar a sua verdadeira vocação de reunir as pessoas no espaço público e não de separá-las com muros, cercas e interdições. Lavamos a alma, ainda que pelo tênue momento de uma única apresentação. A brisa sopra sobre a cidade e as pessoas parecem flanar mais leves entre as mangueiras da praça. Para nós também sopra uma lufada de alívio e de sensação do dever cumprido. Finalmente, conseguimos realizar o sonho de nos apresentar em Belém, cidade que nunca havia sido visitada pelo Galpão em seus 32 anos de existência.

28/9

Dia de descanso e lazer. Visitamos a Ilha do Combu, onde temos uma reserva no aprazível Restaurante Saudosa Maloca. Ainda temos tempo de assistir a um documentário sobre Marguerite Duras, a escritora e cineasta francesa, no famoso Cinema Olympia, fundado em 1912. Ele é hoje o cinema de rua mais antigo do Brasil em funcionamento.

29/9

Compras de última hora no Mercado Ver-o-Peso. O mercado é uma pérola da cultura popular brasileira e paraense, com uma enorme quantidade de barracas de comidas, artesanato, plantas e óleos medicinais, numa apoteose do nosso sincretismo cultural, síntese do encontro da cultura indígena da Amazônia com nossas raízes africanas e europeias.

. Eduardo Moreira é ator do Grupo Galpão.

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