História verde

Livro organizado pela pesquisadora Lorelai Kuri mostra como as plantas influenciaram a formação do povo brasileiro. Alimento e remédio, elas são fonte de cultura e riqueza

por 04/10/2014 00:13
Jean-Baptiste Debret/reprodução
Jean-Baptiste Debret/reprodução (foto: Jean-Baptiste Debret/reprodução)
Eduardo Tristão Girão

O livro Usos e circulação de plantas no Brasil – Séculos XVI-XIX, organizado por Lorelai Kury, é a prova de que a pesquisa benfeita, aliada ao esforço conjunto de profissionais da área, ainda pode render interpretações interessantes e pertinentes sobre o tema. Com edição bem cuidada e fartamente ilustrada, a obra é composta por seis ensaios que levam o leitor a pensar a formação brasileira por meio do fluxo de plantas promovido PELO Império Português.

“A ideia do livro surgiu a partir de pesquisas anteriores sobre a história da botânica e das viagens científicas. Muitas vezes, tive de investigar a origem das plantas que crescem no Brasil e percebi que muitas eram exóticas. A escolha dos temas e dos capítulos se deu em função de pesquisas já existentes. Todos os autores já haviam refletido de algum modo sobre a circulação das plantas”, explica a historiadora Lorelai Kury, que contribui com um dos textos do volume: “Plantas sem fronteiras: jardins, livros e viagens – Séculos 18/19”.

Para os demais ensaios, ela convidou Heloisa Meireles Gesteira (“A América portuguesa e a circulação de plantas – Séculos 16/18”), Bruno Martins Boto Leite (“Verdes que em vosso tempo se mostrou – Das boticas jesuíticas da Província do Brasil – Séculos 17/18”), Flávio Coelho Edler (“Plantas nativas do Brasil nas farmacopeias portuguesas e europeias – Séculos 17/18”), Leila Mezan Algranti (“A arte de cozinhar e as plantas do Brasil – Séculos 16/19”) e Juciene Ricarte Apolinário (“Plantas nativas, indígenas e coloniais: usos e apropriações da flora da América portuguesa”).

Lorelai revela que a observação do uso de plantas ao longo do tempo permite compreender a trajetória do país de um modo diferente. “Elas constituem a base de nossa alimentação e a matéria de grande parte dos produtos que utilizamos. Na história do Brasil, as plantas foram e são centrais para a produção de riquezas, para o comércio e para a própria sobrevivência das populações. As diferentes regiões propiciam o cultivo ou a coleta de distintos vegetais em função de seu clima, solo e topografia. Assim, os costumes também variam em função das plantas e das maneiras específicas de tratá-las”, observa.

Costumes Entre os destaques do livro está o ensaio de Juciene Apolinário, professora da Universidade Federal de Campina Grande (PB), que parte de documentos inéditos para analisar os deslocamentos indígenas pelas capitanias. Essas movimentações os puseram a morar em biomas diferentes daqueles a que estavam habituados e, com isso, eles foram obrigados a conviver com etnias de língua e costumes distintos. Os povos aprenderam uns com os outros, observando o entorno e improvisando com o conhecimento que traziam do local de origem.

Ao mesmo tempo em que detinham noções de botânica acumuladas em viagens, os europeus dependiam do conhecimento dos indígenas para avançar no território brasileiro. Não fossem essas trocas (e não apenas no Brasil), o conhecimento sobre a área não teria avançado tanto na Europa de séculos atrás. Para ficar apenas em alguns exemplos, os nativos daqui, que tinham a natureza como despensa, sabiam usar anti-hemorrágicos (quina e mastruz), combater problemas gástricos (macela, boldo, erva-cidreira) e o que usar para obter efeito alucinógeno (jurema e coca).

Caiana Embora os portugueses tenham papel central na circulação de plantas pelo planeta, Lorelai explica que eles não costumavam aperfeiçoar variedades com objetivo econômico. “No Oriente, os portugueses se especializaram mais no comércio do que na produção de especiarias, que eram, em sua maioria, plantas. Muitas vezes, a introdução de novas espécies ou variedades se deu pela pirataria ou em situações de guerra. Foi o caso da cana de Caiena (a caiana), de certos abacaxis, do café e da reintrodução de especiarias, como o cravo e a canela”, revela.

As três plantas mais significativas para a história do Brasil
» Mandioca
“Era a base da alimentação dos nativos da América e sustentou em grande parte o início da colonização portuguesa. Foi levada desde cedo para a África, onde foi incorporada à alimentação de muitas populações.”

» Cana-de-açúcar

“De origem asiática, seu cultivo ocupou o litoral do Nordeste e parte do Sudeste durante três séculos. Construiu-se uma cultura que usava o açúcar como uma das principais fontes de energia. Além disso, ele está associado ao consumo de outros produtos coloniais, como o café, o cacau e o chá. De especiaria e remédio, usado em pitadas, o açúcar passou a ingrediente comum. Em Portugal, o açúcar brasileiro propiciou o desenvolvimento da doçaria e o consumo de bebidas adoçadas.”

» Quina

“A descoberta pelos europeus do seu uso contra as febres (malária, em particular) foi elemento essencial para a colonização do interior do continente. A planta é nativa de regiões montanhosas do Peru, mas também está presente no Brasil. O comércio da quina envolveu grande quantidade de pessoas, navios e riqueza. Além da quina verdadeira, várias plantas ‘amargas’ eram chamadas de quina e muitas delas, efetivamente, têm virtudes febrífugas. As boticas das Américas eram sempre bem abastecidas de remédios à base da casca amarga da quina e seus sucedâneos.”

O MESTRE
Um dos autores brasileiros que mais contribuíram para a bibliografia sobre plantas para o público leigo, Gil Felippe morreu este ano, em São Paulo. Ph.D. em botânica pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e professor da Universidade Estadual de Campinas, ele deixou obras interessantes, várias delas publicadas pela Editora Senac São Paulo. Destacam-se Do éden ao éden – Jardins botânicos e a aventura das plantas, Grãos e sementes – A vida encapsulada, Frutas – Sabor à primeira dentada e Entre o jardim e a horta – As flores que vão para a mesa.

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