Bienal x Matarazzo

Duas mostras em cartaz em São Paulo lançam saudável provocação: qual é o papel da arte no Brasil contemporâneo?

por 04/10/2014 00:13
Nelson Almeida/Reuters
Nelson Almeida/Reuters (foto: Nelson Almeida/Reuters)
Sérgio Rodrigo Reis



A movimentação em torno das bienais de arte, sem sombra de dúvida, é um dos principais acontecimentos ligados a eventos dessa natureza. Quando as primeiras polêmicas se dissipam, as reclamações dos “excluídos” perdem força e discursos (não raras vezes pretensiosos) de curadores demonstram não fazer tanto sentido, o que sobra – ou não – é a capacidade de movimentar o cenário artístico. Se analisada apenas por esse prisma, a Bienal de Arte de São Paulo, em cartaz até dezembro, continua comprovando a sua relevância.

De acordo com os curadores, o título Como (...) coisas que não existem é uma “invocação poética do potencial da arte e de sua capacidade de agir e intervir em locais e comunidade onde ela se manifesta”. Mesmo que a intenção seja boa, a visita à 31ª edição do evento não estimula reflexões nesse sentido. O que se vê é uma série de propostas – grande parte vinda de autores de outros países – que não estabelecem conexões entre si. Segmentados por uma expografia labiríntica, os projetos não aparentam dialogar nem se relacionar ou se complementar. Ao contrário: funcionam como pensamentos isolados.

Há, sim, a tentativa de abordar temas urgentes, como a questão das minorias, o uso da religião e de outras formas de dominação para controle social, o discurso político, a individualidade e a solidão. Porém, tudo parece menor e sem importância quando, em meio a tantas propostas, o visitante depara com obras de arte cuja potência está no próprio trabalho – e não no discurso inventado ou na intenção. É o que ocorre dentro da sala à meia-luz onde flutuam lanças criadas pelo polonês Edward Krasinski. Ou na sala de vídeos – em geral, bastante enfadonhos –, onde o espectador encontra a interessante instalação Open phone booth, de Nilbar Güres.

O turco Güres exibe dois filmes simultaneamente, projetados em cada parede do espaço. Veem-se moradores de locais remotos do planeta obrigados a escalar altas montanhas em busca de sinal para o celular. Solidão, silêncio e comunicação são materializados numa das melhores instalações da Bienal.

Templo

Apesar de recorrer a um recurso batido, é preciso dar a mão à palmatória: Inferno, do israelense Yael Bartana, é impactante. Rodado no Brasil, o filme causou sensação ao especular sobre como seria a destruição do recém-inaugurado Templo de Salomão, megaedifício erguido na capital paulista pelo bispo evangélico Edir Macedo. O líder da Igreja Universal tomou para si a missão de construir uma “nova Jerusalém” brasileira. Para tanto, buscou inspiração na Terra Santa enquanto angariava recursos junto aos fiéis para viabilizar seu megaprojeto. Inferno propõe a desconstrução do feito, rememorando a saga de templos famosos que não conseguiram escapar da ruína.

Ao longo dos séculos, judeus ansiaram pela vinda do Terceiro Templo, que seria enviado à Terra por Deus ou erguido pelo homem, trazendo promessas de paz, salvação e unidade. Tal desejo se alimentou da destruição tanto do Templo do Rei Salomão, em Jerusalém (construído em 850 a. C. e dizimado 400 anos depois), quanto do Segundo Templo (arrasado pelos romanos em 70 d.C.).

Edir Macedo pretende proporcionar aos adeptos da Universal a sensação de pisar no solo “onde um dia esteve Jesus”. Com Inferno, Yael Bartana se apropria da inusitada “missão” para questionar: poderia a fruição de uma nova utopia – talvez, a nova Terra Santa no Brasil – escapar à iminente destruição, destino de mitos e projetos presunçosos?

Em alguma medida, a mensagem implícita de Inferno se encaixa perfeitamente nos rumos traçados para a 31ª Bienal de Arte de São Paulo. Pode o evento sobreviver destinando a maior parte de sua força, orçamento e curadoria a projetos estrangeiros em detrimento dos brasileiros? A quem interessa dar voz e vez a discursos de outros países, que pouco ecoam e provocam quase efeito algum por aqui, em detrimento da produção estética brasileira, que, cada vez mais, chama a atenção do mundo e busca espaços para ser exposta?



Made by

Vários artistas esboçaram uma reação diante desse paradigma, que impregna tanto a Bienal quanto outros empreendimentos ligados às artes visuais, como o mineiro Instituto Inhotim, com sua evidente preferência pelo que vem de fora. O resultado atende pelo nome de Made by... Feito por brasileiros. O enorme projeto de ocupação, em cartaz no Bairro da Bela Vista, reúne obras de um grupo que não participa da megaexposição no Parque do Ibirapuera.

A chamada “invasão criativa” ocupa as dependências do antigo Hospital Matarazzo. Obras foram desenvolvidas para a edificação abandonada, onde se veem precariedade e degradação – marcas preservadas, sem qualquer tipo de maquiagem. Pelo contrário: vários artistas criaram sites specifcs elaborados especialmente para aquele espaço, apropriando-se da memória latente do centro de saúde. A forte narrativa visual se volta para temas como vida, morte, passagem do tempo, angústia, cura e milagre.

É muito mais potente a experiência de entrar num espaço como a Cidade Matarazzo, que traz a memória de nosso povo. Vê-se, entre as árvores, intrigante instalação criada por Tunga. Ao andar pelos velhos cômodos transformados em galerias de arte, deparamos com o intrigante caso médico das pedras invisíveis, transformado em arte por Vik Muniz.

Numa ala subterrânea do hospital, dentro do cofre, foi achado um curioso dossiê sobre o paciente Agenor Andrade Filho. Considerado hipocondríaco, ele era assíduo frequentador do Hospital Matarazzo. Queixava-se de pedras nos rins, embora os médicos não detectassem cálculos em radiografias. Em março de 1958, Agenor reclamou de fortes dores lombares. Depois de os exames, mais uma vez, nada constatarem, o paciente foi aconselhado a tomar analgésicos e repousar em casa. Uma semana depois, ele voltou com febre alta e sinais de insuficiência dos órgãos. Submetido a cirurgia de urgência, descobriu-se que Agenor era portador de cálculos massivos – um em cada rim. Pouco depois, o quadro evoluiu para infecção generalizada e o “hipocondríaco” morreu.

O mais incrível está no relato médico deixado pelo doutor Emílio Borelli: “A compulsão de Agenor por doenças provocou a materialização de dois objetos de propriedades materiais, porém invisíveis ao olho humano. O contorno só se tornava discernível quando imersos em líquido.” Apresentada no 3º Congresso de Nefrologia da Academia Paulista de Medicina, a descoberta chamou a atenção da imprensa sensacionalista, causando constrangimento à diretoria do Matarazzo, que exigiu o arquivamento do caso. Os documentos que deram origem à instalação de Vik Muniz só foram descobertos em 2013.

. Sérgio Rodrigo Reis é jornalista e presidente da Fundação Municipal de Cultura, Lazer e Turismo de Congonhas

MAIS SOBRE PENSAR