A literatura e o direito à morte

Maurice Blanchot deixou obra instigante, que ajuda a compreender a atual cena política do Brasil. O %u2018pensamento da diferença%u2019 é uma das marcas registradas do intelectual francês

por 27/09/2014 00:13
Leandro Couri/EM/D.A Press - 22/6/13
Leandro Couri/EM/D.A Press - 22/6/13 (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press - 22/6/13)
João Lanari Bo



O chamado “campo literário” é um espaço associado à exposição daqueles que nele trafegam – literatos, escritores, teóricos, poetas, enfim, todos os que vivem em torno desse fenômeno que é a literatura, a palavra escrita e expressiva, se possível imortal. Escrever é publicar, tornar-se público, expor-se para ocupar um lugar no “campo”. Maurice Blanchot, um singular pensador francês que atravessou o século 20 intrigado com essa questão – a presença e a ausência da palavra –, produziu uma vasta obra, fragmentada, quase inclassificável, situada na fronteira do relato ficcional e da reflexão filosófica, correndo por fora do saber universitário.

Para Blanchot, não é a exposição como permanência que interessa: escrever, para ele, é apagar-se, retirar-se no ato mesmo de fazer-se presente. Sua discrição, pessoal e doutrinária, era tamanha que em vida (faleceu aos 94 anos, em 2003) foi dado como morto por um manual escolar, ainda na década de 1980. Sua obra, hermética e contundente, entretanto, conquista cada vez mais fiéis e devotados leitores.

No Brasil, as traduções são poucas, mas existem. Em Brasília, a Editora da UnB lançou uma bela edição de A comunidade inconfessável, curta e aguda reunião de fragmentos que especulam, quem diria, sobre os “momentos fundadores da emergência do desejo” que animam a criação das “comunidades”. Qualquer semelhança sobre a febre “social” que assola a vida digital de nossos dias não é mera coincidência: um dos focos do texto são as comunidades gestadas em maio de 1968, na França, quando a “poesia era cotidiana” e “sobre os muros encontrávamos aquilo que é o princípio de toda literatura: o cuidado de transmitir não um saber, nem um discurso, ainda que crítico, mas sim um sentido de reencontro”.

A fina leitura de Blanchot cai como uma luva na apreciação do que foram as manifestações de junho de 2013 nas capitais brasileiras. Até um aspecto muito censurado na época, à esquerda e à direita – a suposta “ausência de lideranças” das “comunidades” que encheram as ruas –, encontra na escrita de Blanchot uma expressão “poética”. Outra referência é o amigo Georges Bataille, o “último dos místicos” entre os filósofos-escritores (nas palavras de Sartre), que nos anos 1930 capitaneou uma “comunidade” cujo nome exprimia exatamente isso: Acéphale, ou seja, sem cabeça (coincidência ou não, a valente casa editorial Cultura e Barbárie, de São Paulo, traduziu no ano passado diversos cadernos do Acéphale).

Guerra

Maurice Blanchot, a despeito da obstinada circunspeção, da quase “invisibilidade”, como disse Bataille, foi um ativo observador da cena política em seu país. Sua trajetória é polêmica: próximo à extrema-direita nacionalista francesa dos anos 1930, quando queria ser jornalista, mudou 180 graus durante a guerra e outros tantos no pós-guerra, alinhando-se aos principais movimentos contestatórios de esquerda (não só em maio de 1968, mas também como signatário e articulador do famoso “Manifesto dos 121” contra a guerra da Argélia, em 1960). O lado vichyste (favorável ao regime fantoche pró-nazi de Vichy) veio à tona sobretudo depois de sua morte, agregando mais uma dimensão enigmática ao autor.

Como alguém como Blanchot pode ter escrito diatribes antissemitas e xenófobas? Ainda vivo, chegou a admitir alguns “erros”, mas a herança é mesmo complicada: recentemente, a prestigiosa Editora Gallimard lançou um volume dos Écrits politiques de Blanchot, organizado por Eric Hoppenot, o qual foi simplesmente massacrado por um mais prestigioso ainda grupo de intelectuais, em função dos “equívocos grosseiros” cometidos. Não é fácil lidar com as ambiguidades francesas desse período, menos ainda na literatura...

Literatura

Mas é de literatura de que se trata quando se fala em Blanchot. Leitor de Sade, Lautréamont, Kafka, Nietzsche, Celan, Proust e muitos outros, Maurice Blanchot enveredou também na ficção (no Brasil, apenas o L’Arrêt de mort foi traduzido pela Imago, intitulado Pena de morte). E muita reflexão: publicada pela Rocco, a esplêndida coletânea A parte do fogo traz um dos mais influentes ensaios de Blanchot, “A literatura como direito à morte”. Segundo o nosso autor, “a palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é”.

As palavras denotam uma ausência, pois suprimem a existência do objeto ao qual se referem: ao mesmo tempo, entretanto, constituem-se como presença, como instância simbólica reveladora de significados e símbolos. Para falar e se comunicar entre si, os homens precisam da morte que as palavras instauram: a morte é a fundação da linguagem.

Altas abstrações, diriam as comunidades. Em A conversa infinita, editado na França em 1969 e no Brasil em 2010 (três volumes pela Editora Escuta, dois deles traduzidos pelo poeta João Moura Jr.), Blanchot reuniu a plêiade de sua produção, alternando textos “neutros” e “diálogos”, desenvolvendo o que Derrida chamou de pensamento da diferença (a reflexão sobre a judeidade e o antissemitismo é um dos destaques dessa obra diversa e polivalente).

Em seu último livro publicado em vida, um opúsculo de título explícito – L’instant de ma mort, de 1994 –, Blanchot revela seu quase fuzilamento no caos do fim da guerra, em 1945, por um desgarrado destacamento comandado por um tenente alemão. Escapou por um triz, de soslaio, personificando afinal a ausência-presença literária da sua existência.

. João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília (UnB)



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