O abismo de TODOS NÓS

Obras do artista plástico e fotógrafo João Castilho denunciam o racismo e a inércia da sociedade brasileira, que aposta no futuro mas repete os erros históricos do passado

por 27/09/2014 00:13
João Castilho/Divulgação
João Castilho/Divulgação (foto: João Castilho/Divulgação)
Gracie Santos



Um negro é engessado até ficar totalmente encoberto pela massa branca que vai endurecendo em frente à câmera. Além da evidente claustrofobia, surge a incômoda (e indescritível) sensação de aprisionamento. Afinal, alguém está tentando descolorir aquele homem, apagar sua imagem, tolher seus movimentos. Pior ainda: sufocá-lo tirando sua liberdade, seu ar, sua vida. Assim são as imagens do vídeo Progresso (5min8), do fotógrafo e artista plástico mineiro João Castilho, de 36 anos, em exibição na mostra O futuro avança para trás, em cartaz até 4 de outubro na Celma Albuquerque Galeria de Arte, em BH.

O homem por trás do gesso é o ator Lucio Mauro, convidado por Castilho a participar da performance que denuncia o racismo, que ultimamente tem mobilizado a mídia e as redes sociais devido a casos registrados nos estádios de futebol – o antigo território de todos, do povo, transformado em “arena” da maioria branca, que pode pagar ingressos caros.

Casos de celebridades que vêm ganhando holofotes devem realmente ser denunciados e discutidos, mas isso não elimina o mal maior: o racismo cotidiano, que faz vítimas cujos problemas, injustamente, não ganham eco ou defesa nos meios de comunicação. Vítimas do descaso, das ainda carentes políticas inclusivas e do trabalho de conscientização que nem sequer começou dentro de casa. Sistemas de cotas nas universidades e medidas similares foram tomadas e são, é verdade, fundamentais. Mas ainda estamos longe de evitar situações constrangedoras, tão arraigadas que passam “despercebidas” por quem as comete, e são “aceitas” por quem as sofre, gente emudecida por séculos de submissão. Como ocorreu na festa em que o marido africano de uma jovem foi “confundido” pelo senhor de meia-idade com o manobrista (nem havia um). Só depois de entregar as chaves do carro e dar instruções para que ele fosse estacionado o convidado foi informado de que o negro era o novo integrante da família.

O que dizer, então, do caso do cunhado negro constantemente chamado de “macaco”, em tom jocoso, brincadeira de mau gosto aprovada pela maioria dos familiares? Ou do negro que é alvo de olhares desesperados nas ruas, “identificado” como suposto assaltante? Não faltariam exemplos “amenos” de violência implícita, histórias que não frequentam delegacias nem páginas dos jornais. Elas existem – ponto. E não se fala mais nisso.

 No vídeo Progresso, a mão que encobre a pele negra, ao mesmo tempo em que impede os movimentos daquele que se torna “prisioneiro”, é a do próprio artista. Castilho engessa o ator, sob o acompanhamento de um ortopedista. Não foram necessários mais que 10 minutos para calar Lucio. Sim, até seu rosto foi coberto. Não há truques. É assim, aliás, com todo o trabalho do fotógrafo, que também expõe as imagens da série Zoo, na qual retrata animais selvagens levados para ambientes urbanos. Castilho fotografa a onça-parda na sala de estar, imagem criada sob o efeito do medo gerado pela situação (nesse caso, ele contou com a assessoria de um adestrador).

A exposição reúne também fotografias, instalação e objetos, obras que transitam por um rico (e turvo) universo do comportamento e da psiquê humana nesta sociedade que se pensa avançada, sem perceber que, em pontos fundamentais (estruturais até), avança para o nada (o nunca). Ou, para ficar no mínimo, não arreda pé de um lugar no passado, local obscuro habitado por uma história mal contada escrita pelos poderosos senhores do dinheiro, que, para multiplicá-lo, subjugam seu igual. Todos são atores dessa sociedade que, ainda assim e depois de tudo, imagina-se evoluindo.

Suor e lágrimas


Progresso é mais do que mera denúncia do racismo. Permite também a leitura de que muito do “progresso” da humanidade foi construído com braços fortes, suor e lágrimas de negros engessados, eles mesmos sem oportunidade de progredir, de sair do lugar onde o poder os plantou com o adubo do preconceito. Sufocado pelo processo de imobilização, o negro do vídeo de Castilho é vítima do branco que o paralisa. Você, certamente, já viu esse filme em seu dia a dia. Pior: pode nem ter atentado para o problema.

O que parece ocorrer nos campos de futebol é que negros heróis, cheios de ginga, gols e poder, mostram seu valor e sua força, despertando a ira dos que desejam “exterminar” o diferente. Gente que, aos berros, traz de volta a história construída com violência nas senzalas. Assim, sob o efeito do ódio e da decepção, aflora o sentimento perpetrado por capitães do mato de fazendas escravocratas. O racismo dorme em berço esplêndido, para se revelar exatamente nos momentos de descontração, quando o preconceito sai do armário e se mostra por inteiro.

Incomodadas (e com razão), vítimas do racismo nos gramados têm as reações mais diversas: pedem providências ao senhor juiz; comem bananas atiradas ao campo. Mas há quem, no posto máximo de “rei”, declare já ter sido alvo de coisa pior e, numa atitude submissa, aconselhe ao colega ter paciência, fazer vista grossa, ouvidos moucos. Será? Não. Seria bom se episódios como os ocorridos no Rio Grande do Sul servissem para que todos percebêssemos o quanto estamos longe de enfrentar com coragem o racismo e outros ismos. É preciso buscar com dignidade políticas de inclusão, fuxicar sentimentos retrógrados, tomar atitudes que levem ao verdadeiro progresso, aquele que um dia permitirá aos negros, livres de preconceito, assentarem-se nas famílias de brancos. Que permitirá ao negro deste imenso país mestiço chegar ao mercado de trabalho em iguais condições. Esse dia parece se arrastar.

Senzala cotidiana

A sensação que dá é de que estamos à deriva, estagnados, séculos depois de ter “afundado” navios tumbeiros. Enquanto celebridades negras berram por atitudes que estanquem o ódio racial, não têm voz os negros mergulhados na rotina pesada de muito trabalho, pouco dinheiro e consideração zero.

Denunciar o atraso em que vivemos é fato recorrente na obra de João Castilho. É dele o vídeo Abismo, exibido em mostra anterior. Um barquinho boia, lotado de trabalhadores negros sem camisa, seguindo a correnteza em um pequeno lago.

“Convidei negros que trabalham em condomínios de brancos em Brumadinho e superlotei o botinho em alusão direta ao navio negreiro. Não há remos, ele segue sem direção. Historiadores relatam: na época em que grandes companhias transportavam escravos em alto-mar, a maioria dos africanos não temia o trabalho nem o fato de estar preso ou de ser escravo, mas não saber para onde as embarcações seguiam”, diz Castilho.

Assistir ao curta Abismo (https://vimeo.com/59062716), ver Progresso e observar tartarugas de cerâmica esperneando de cabeça para baixo na mostra O futuro avança para trás desperta saudáveis e urgentes sentimentos. Impossível não se incluir nessa massa que, de olho no futuro, repete erros do passado por apego ao poder ou por submissão. Preconceitos reverberam no duro cotidiano de quem precisa provar ser capaz e igual na diferença.

As obras de João Castilho vão fundo nos abismos de todos nós. E seguem além, gritando por um movimento maior, que tire a humanidade do engessamento profundo em que se encontra e deixe que “tartarugas” sigam seu curso natural, sempre em frente. Olhar para trás só mesmo para ter o malfeito como referência, na tentativa de acertar no presente e escrever outro futuro.

O FUTURO AVANÇA PARA TRÁS

Mostra de fotografia, instalação e objetos de João Castilho. Celma Albuquerque Galeria de Arte, Rua Antônio de Albuquerque, 885, Savassi, (31) 3227-6494. De segunda a sexta-feira, das 9h às 19h; sábado, das 9h30 às 13h. Até 4 de outubro. Confira também a videoinstalação Prélio, de João Castilho, na Galeria Arlinda Côrrea Lima do Palácio das Artes, Av. Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3236-7400. De terça-feira a sábado, das 9h30 às 21h; domingo, das 16h às 21h.

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