Almas DESERTAS

Cia. Luna Lunera se alia ao escritor Caio Fernando Abreu para combater a homofobia. O teatro cumpre a missão política de enfrentar o obscurantismo

por 27/09/2014 00:13
Gustavo Jacome/divulgação
Gustavo Jacome/divulgação (foto: Gustavo Jacome/divulgação )
Inez Lemos

“A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como ‘um deserto de almas’. O outro concordou, sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vez em quando salgadinho no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.”

Esse fragmento do conto “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu, adaptado para o teatro pela Cia. Luna Lunera, espalha, de forma poética e contundente, questões de aparente mediocridade e repressão que estão na ordem do dia.

A história se passa em uma repartição. O ambiente de trabalho é retratado como o palco das fofocas e dos olhares repressores, recheados de moralismo e hipocrisia. Dois rapazes se conhecem na empresa e logo sentem uma afinidade que os une para além da cama. O foco se amplia nos papos sobre filmes, músicas, mulheres, interesses. Discretos, selam amizade reforçada pela solidão – ambos viviam sós. Os papos nos almoços de domingo eram regados a boleros. O encontro dos dois metaforiza descanso na loucura – as veredas dos sertões, o oásis no deserto. A solidão é marcada pela ausência de desejo, de algo capaz de inundar a alma de alegria. Era isso que Raul representava para Saul, a possibilidade de transcender o cimento, o barulho dos ônibus, as cabeças mesquinhas da repartição. Um encontro que permitia mergulho nas entranhas. Ambos abusavam do cinema e da música para se salvar. A arte é condutora de vitalidade, além de hidratar, planta entusiasmo onde impera desalento.

O conto denuncia a mediocridade que subjaz a homofobia, o preconceito. O que leva pessoas a se ocupar com a cama alheia, a se interessar em investigar se entre duas pessoas do mesmo sexo há algo além de amizade?

“Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares... Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas.” O fato se alastrou pelos corredores. Logo, foram surpreendidos pelo chefe de seção, que lhes comunica que, em função de umas cartas anônimas denunciando “relação anormal, ostensiva e desavergonhada” entre os dois, era obrigado a demiti-los.

Preconceito, moralismo, fofocas, maledicência – significantes que se alastram como erva daninha nas instituições. Caio responsabiliza: infelicidade, tédio, vazio cultural, vida interior empobrecida. A alegria diante das afinidades que envolvem uma relação entre pessoas do mesmo sexo pode provocar incômodo, inveja. Contudo, presenciamos um outro fator que vem incentivando a ira aos homossexuais: o uso político da homofobia para defender interesses econômicos.

Estado Ao longo da história, o preconceito foi usado pelo Estado em defesa de interesses financeiros. Durante a colonização do Brasil, Portugal escravizou africanos em nome de uma suposta inferioridade do negro – homens fortes, bons para o trabalho braçal, porém incapazes para o trabalho intelectual. Hitler, ao criar o nazismo e em nome da eugenia, promoveu o genocídio dos judeus. Sempre teremos justificativas para exercer dominação, sempre descobriremos aspectos que operam como desculpas para excluir, perseguir e exterminar uma parcela da população.

No caso da homofobia, presenciamos uma narrativa que tenta se apoiar na religião e explorar a importância da família “hierárquica” de outrora. Na verdade, as igrejas neopentecostais estão tentando criar um fator que justifique a importância de fortalecer a bancada evangélica. Destacam passagens do Antigo Testamento e proclamam que Deus não abençoou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A família nuclear, geralmente centrada no pai provedor, autoritário e machista, não é lembrada com carinho por filhos e esposas. Muitos saudosistas lamentam a mobilidade das novas configurações familiares: monoparental, casal homossexual, entre outros. A casa se democratizou, o poder circula entre muitos. A ideia do homem como único detentor do falo não cola mais. Será que devemos ter saudade do pai coronel – patriarca que, com mão de ferro, comandava a família como comandava a propriedade rural?. Desde que alguém cumpra com a função paterna e materna adequadamente, as crianças estarão salvas.

Trevas Apropriar-se da beleza poética da peça, ao denunciar aspectos do momento político que vivemos e que mais nos remetem à Idade Média, é uma forma de resistir ao medo das trevas. A ameaça chega prometendo noites escuras, uma vez que o capeta do fundamentalismo odeia poesia, cinema, teatro. Tudo que Raul e Saul amavam. Como combater o pensamento retrógrado, alienado – jogo político sujo, desavergonhado e perverso? Pastores evangélicos, em sua maioria, convencem os fiéis com táticas de guerra, pregam com gritos, chutes e palavras de ordem: “Vamos derrotar Satanás”. Não se pregam mais solidariedade, tolerância e perdão.

Ao tratar questões da sexualidade humana com religião, deslocamos o foco e enfraquecemos o debate. A homossexualidade é efeito dos amores edípicos, diz da forma como a criança foi marcada pelos pais – identificação maior com a mãe, negação do pai. Em meio à complexidade da questão, o sujeito orienta a sexualidade, que, por sua vez, não resulta de uma escolha consciente, deliberada. É algo maior que a ele se impõe.

Ninguém nasce racista, nazista, homofóbico, violento. Ao rechaçar o diferente, desdenhando, fofocando e humilhando-o, há esperança de ele se retrair e perder a força para lutar. Raul e Saul enfrentaram o moralismo insano dos colegas com altivez. A rotina mortífera do trabalho não perdoa ninguém. E a fofoca é o raio de luz que rompe a solidão e a mesmice, movimentando o tédio.

Caio denunciou o preconceito com paixão e entusiasmo, nada de jogar pedra no senso-comum que perambulava pelas esquinas frias e sujas de São Paulo. A moçada da Cia. Luna Lunera entendeu o recado. Entra no palco esbanjando talento, simpatia e convicção na arte – espada ideal para combater o obscurantismo dos reacionários.
Os atores se entregam ao texto lembrando a importância do teatro como arte engajada, munição contra a crueldade do mundo. Reprimir, culpar, introjetar pecado e criar demônios – quantas não são as formas desumanas de conquistar o poder e ganhar uma eleição? Quão emocionante é ver jovens dedicando a vida ao teatro – apostar no belo é a forma ideal de denunciar a maldade humana.

Inez Lemos é psicanalista


AQUELES DOIS

Com Cia. Luna Lunera. Adaptação do conto de Caio Fernando Abreu. Teatro João Ceschiatti do Palácio das Artes, Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3236-7400. Sexta-feira, às 21h; sábado e domingo, às 19h. Até 12 de outubro. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada).

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