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Todos somos personagens

Autor de O mundo dos outros, jornalista conta os segredos da artesania de elaborar perfis

Vanessa Aquino

Escrever perfis é uma arte. Captar a medida exata do mundo dos outros requer um exercício de observação e sensibilidade extremas, como o fotógrafo ao capturar uma imagem ou o artista plástico a delinear retratos, paisagens ou sentimentos. Independentemente da linguagem, conhecer a essência do objeto, local ou pessoa a ser representada é fundamental. No caso dos perfis não é diferente. Essa é a vertente que segue o jornalista, professor universitário e escritor Sergio Vilas-Boas. Com sutileza, ele descreve o que há de mais peculiar em cada personagem. Foi assim com Ferreira Gullar, Manoel de Barros, João Ubaldo Ribeiro, Paul Auster, Gabriel Garcia Marquez, Lya Luft, Tostão e Cristovao Tezza, entre outros.


“Meu trabalho é artesanal. Tudo para mostrar quem é a pessoa, sua personalidade e sua obra, verdadeiramente. Busco ouvir em momentos e ambientes diversos o protagonista e algumas pessoas próximas a ele/ela. E, quando julgo pertinente, revelo também as circunstâncias em que ocorreram os encontros”, detalha o jornalista, que estudou narrativas biográficas em seu mestrado e em seu doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP).

 

Quando e por que você começou a escrever perfis?
Comecei nos anos 1990. Na época, trabalhava como subeditor do Fim de semana, suplemento cultural da extinta Gazeta Mercantil. Daniel Piza, então o editor-chefe, sugeriu que publicasse perfis de escritores brasileiros reconhecidos regionalmente – um de cada estado. Essa ideia, tal como foi proposta, não avançou, por razões que nem me lembro agora, mas continuei a escrever reportagens biográficas naquele suplemento. Passada essa fase, ingressei nos programas de mestrado e doutorado da ECA/USP para pesquisar narrações biográficas, especificamente biografias escritas por jornalistas. A partir daí, nas horas vagas ou de necessidade, aproveitei quase todas as chances que tive de retratar indivíduos, famosos ou não. Às vezes, propunha os nomes; noutras, aceitei propostas que julgava interessantes. Entre 2010 e 2013, por exemplo, fui sondado para escrever dois perfis de empresários em forma de livro: Luiz Alberto Garcia, do Grupo Algar, e Ivens Dias Branco, da M. Dias Branco S/A. As duas obras saíram também pela Editora Manole.

O que é necessário para ser personagem de um perfil jornalístico?

Somos bilhões de terráqueos. Todos somos personagens, digamos, da Grande Narrativa Contemporânea da Humanidade sobre a Terra. Mas, jornalisticamente falando, isso é tão enganoso quanto impreciso. Ninguém nasce personagem. Você também não pode dizer que, para ser personagem de um perfil, basta estar vivo... (risos). Não. Na verdade, o indivíduo se torna personagem.

Como?
Quando alguém o escolhe e ele topa ser. Sim, a pessoa tem de topar. Somente em raríssimos casos o autor de um perfil abre mão de se relacionar tête-à-tête com o escolhido. Quando digo isso em um ambiente de jornalistas, a primeira coisa que me perguntam é: “Ah, mas o Gay Talese não falou com o Frank Sinatra para o perfil ‘Frank Sinatra está resfriado’”. É verdade. Mas é um caso tão singular, tão único e tão inusitado no conjunto da produção do próprio Talese que os leitores daqui passaram a tomar a exceção da exceção como regra. Não é bem assim. O método clássico de construção de perfis implica encontrar, dialogar, relacionar-se com o protagonista e com as pessoas de seu círculo íntimo.

Nesse cenário de transformações da imprensa, de crescimento de mídias digitais, ainda há espaço para o perfil?
O lado bom das mídias digitais é exatamente este: abrir novos espaços para tudo dentro do mundo editorial. E os textos biográficos estão nesse pacote de novas perspectivas também. Não é bem a minha praia, mas percebo que os retratos por escrito têm sido muito bem aproveitados e encampados pela linguagem multimídia. Sim, ser digital não necessariamente significa multimídia, mas essa é uma possibilidade bem interessante.

Como construir um perfil quando o personagem pouco fala e pouco se mostra?

O verbal não é a única linguagem na qual você presta atenção durante pesquisas e conversas. Até porque, qualquer pessoa tem um amplo conjunto de linguagens não verbais: o gestual, o vestuário, o estilo de vida, o modo de reagir (ou não reagir) às outras pessoas, os silêncios, etc. Quanto a mostrar-se pouco ou muito, isso precisa ser pactuado. Quando a pessoa aceita ser a personagem real de uma narrativa, ela já está assumindo algum grau de exposição. E, da parte do autor, quando ele propõe a história da tal pessoa, ele já assume que não terá como realizar tudo o que pretende. Com maleabilidade, dá para criar um mínimo de paciência mútua durante o processo de apuração. E, assim, portas e janelas vão se abrindo.

Poderia nos explicar o seu processo de produção de perfil?

Meu trabalho é muito artesanal. Empenho-me em mostrar, verdadeiramente, quem é a pessoa, sua personalidade e sua obra – material ou imaterial. Busco ouvi-la em momentos diversos e ambientes variados. Quando considero pertinente, revelo também as circunstâncias em que ocorreram os nossos encontros. E, na medida do possível, colho depoimentos de pessoas próximas. Sou fascinado por indivíduos, mais do que por grupos, e o desejo de compreender as trajetórias sempre singulares dos outros é a minha maior motivação.

Quais são as suas referências no que diz respeito ao jornalismo literário e à produção de perfis?

Li ou analisei praticamente tudo o que há de jornalismo literário em língua portuguesa, principalmente os bons autores de perfis da escola americana: Gay Talese, Joseph Mitchell, David Remnick e outros. No inglês, apreciei ainda Janet Flanner, Lillian Ross, Mark Singer, John McPhee, Calvin Trillin, Susan Orlean. No fim do meu livro, há um ensaio intitulado “A arte do perfil”, em que compartilho um pouco da história do gênero, sua evolução ao longo do século 20, a sua ligação intrínseca com o jornalismo literário e com a reportagem em profundidade.

Você acha a produção de perfis ainda é pequena no Brasil?

Em meus investimentos na narração biográfica, percebi que o Brasil não tem tradição de publicar jornalismo literário de maneira regular e estável. Ao longo do século 20, tivemos alguns picos de entusiasmo pela narrativa detalhada e aprofundada. Além disso, o jornalismo brasileiro, no geral, tende a rechaçar tudo o que não é noticioso, como se as reportagens especiais – grupo ao qual os perfis se vinculam – não tivessem grande interesse público, como se jornalismo fosse sinônimo de notícias urgentes e só. Isso não me incomoda em nada, pessoalmente, mas é um tremendo equívoco conceitual, no meu entendimento.

Arte, literatura e jornalismo podem se fundir sem prejudicar a impessoalidade da narrativa jornalística?

Essa tal impessoalidade, tão utópica quanto reiterada, não é o pilar único do jornalismo. Ela funciona e deve ser respeitada, por exemplo, nos noticiários mais complexos, nos quais os discursos inevitavelmente ideologizados têm mesmo de ser postos em perspectiva, com distanciamento e uma firme consciência de busca pela neutralidade. Ok. Mas deve ser frustrante demais acreditar que a impessoalidade é uma panaceia. Tente ser impessoal, em sentido lato, durante a elaboração de um perfil em profundidade... Você não vai atingir nada de realmente relevante. Assim como as Minas são muitas, segundo o Guimarães Rosa, os jornalismos são vários. (Risos). Existem modos e modos de se praticar a narrativa de não ficção – em última instância, o jornalismo é uma narrativa de não ficção. Todos esses modos são legítimos, têm metodologias específicas e fins específicos. Querer forçar um procedimento padrão rígido só resulta em limitações culturais, o que não é nada bom.

Como costuma trabalhar a complexidade dos personagens?

A complexidade é inerente ao ser humano, e a única maneira de lidar com ela é aceitando que tudo decorre de um processo social. Num processo social, nada é previsível, linear, certinho. A filosofia e a psicologia têm me ajudado bastante a entender isso. Por exemplo, tento recusar as velhas dicotomias do tipo herói-vilão, bom-mau, vencedor-perdedor, forte-fraco, qualidade-defeito. Tudo está interligado, e por isso você tem de cruzar, avaliar, ponderar as evidências captadas pela observação sistemática e pela escuta atenta.

Entre os perfis que compõem o livro, qual deu a você mais prazer e qual o surpreendeu mais?

Todos me deram enorme prazer. Mas o do senhor Isac Valério, na cidade de Alto Caparaó (MG), foi especial. Ele faleceu anos depois de publicado o perfil. O senhor Isac tinha um conhecimento que estava em vias de extinção: construir e consertar moinhos de pedra. Apesar de ser um homem de pouca instrução formal, sua intensa sabedoria me cativou. Dos textos incluídos no livro, o do senhor Isac é o que tem o menor número total de caracteres, mas talvez seja o mais denso e inspirador. Quanto ao que mais me surpreendeu, acho que foi o do escritor João Ubaldo Ribeiro. Nosso encontro em seu apartamento, no Rio, foi complicado. Enquanto ouvia e observava o Ubaldo, pensava em como escapar da armadilha – na qual muitos jornalistas caíram – de retratá-lo como um personagem de si mesmo. Mas, diante de mim, ele tentou ser uma pessoa que ele não era. No fim das contas, deu tudo certo, mas foi preciso um enorme jogo de cintura para que o “Ubaldo segundo o Sergio” não virasse uma caricatura.

PERFIS: O MUNDO DOS OUTROS

22 PERSONAGENS E 1 ENSAIO
 De Sergio Vilas-Boas
 Editora Manole,
288 páginas. R$ 59