Solidariedade não dói

Hackers danificam inexplicavelmente a página do movimento Poetas del Mundo. Símbolo de ódio e desprezo ao poder da palavra escrita, essa atitude agressiva provoca indignação

por 13/09/2014 00:13
Han Jae-ho/Reuters
None (foto: Han Jae-ho/Reuters)
Márcio Almeida


Encaminho a reflexão seguinte em solidariedade ao poeta Luís Arias Manzo, do movimento Poetas del Mundo, que informou aos autores de poesia do planeta a invasão da página universal do movimento, que perdeu muitas informações e colaborações acumuladas naquele registro virtual.

O que leva hackers a raquear uma página de poesia? Teria algum poeta – ou vários – posto o dedo na ferida em favor de uma causa relevante que está sendo desdenhada pela Organização das Nações Unidas (ONU) ou pela Organização dos Estados Americanos (OEA)? Seria alguém com imensa ojeriza de poesia? O que levaria um ser humano a ter tamanho ódio da palavra escrita, que, via de regra, como nesses movimentos, presta-se a se solidarizar com questões de primeira ordem, como guerras, invasões de países, controles políticos autoritários, violência pela violência, entre outras?

O que leva, no mundo pós-moderno, a poesia a incomodar? Quantos atos de vandalismo virtual há que detonam a poesia e de que nem tomamos conhecimento, mas nos impedem de assumir atitudes críticas em função da humanidade? De resto: ainda existe mesmo uma humanidade?. Não estaríamos vivenciando o tempo próximo do caos absoluto, de destruição do outro em nós mesmos? De violência degeneralizada consentida pela inconcebível e absurda impotência de se fazer alguma coisa contra a devassa total da Terra, pior, de sua gente? Da deturpação grandiloquente dos valores perante uma ética que agora pode ser comprada, vilipendiada, anulada por conluios e contratos sociais estabelecidos à revelia do mundo? Do afrontamento agressivo dos segmentos antes marginalizados? Da prostituição da alma? Da irreversível e definitiva quebra do cristal ante a exposição dos dejetos humanos? Das guerras étnico-religiosas em nome de um deus non sense? Da perda da privacidade via tecnoeletrônica imoral?

Os hackers que detonaram a página de Poetas del Mundo estariam conscientizados de que, como escreveu Cesare Pavese, “a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”? De que escreveu, não leu, o pau comeu, como diz o provérbio? Que Virgílio já havia previsto na Eneida que “arma uirumque cano” (as armas e o herói eu canto), como faria Camões depois n’Os Lusíadas – “as armas e os barões assinalados”? Aperceberam-se esses ignomiosos que Shakespeare havia dito ser preciso levantar armas contra esse mar de problemas que é a vida?

Teriam os hackers conhecimento de que, como admoestou Clarice Lispector, é preciso não ter medo de criar? “Por que o medo? Medo de conhecer os limites da minha capacidade? Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar”, escreveu ela.

Aprendeu essa estirpe daninha à vida que “metáforas concentram mais verdades em menos espaço”, como assevera Orson Scott Card? Que “é impossível desencorajar os escritores de verdade, (porque) eles não se importam com o que você diz, eles vão escrever de qualquer jeito”, como assinalou Sinclair Lewis?

Na escola da depravação humana, os hackers talvez tenham aprendido que a poesia, além de “ensinar e deleitar”, como queria Horácio, é “o ato de escrever como o ato de descobrir no que você acredita” (David Hare). Que a literatura é “uma arma pacífica de resistência”, como pontuou Rubem Fonseca no conto “Intestino grosso”? Que a poesia é uma arma de crítica e denúncia social? Que, como escreveu Marina Tzvietáieva, “enquanto houver palavra todo o país está em chamas”? Que palavras são armas secretas, preconizou Julio Cortázar. Que “a função dos sonhos é a mesma das histórias de ficção: simular na mente como nos sentiríamos se enfrentássemos conflitos que nos assustam e realizássemos nossos desejos mais secretos”, disse Diego Schutt.

Ou então seria porque, como escreveu Fernando Pessoa, “a literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta”. Que “a literatura é uma inspiração para a realidade” (Romain Gary). Que “palavras, uma vez que são impressas, têm vida própria” (Carol Burnett). Ou para coadunar propósitos e intenções com Augusto Roa Bastos: “Eu escrevo para evitar que o medo da morte se agregue ao medo da vida”.

O fato é que é preciso se perguntar: por que os hackers têm o direito de usurpar a poesia? Você aceita passivamente que energúmenos vençam a virtude da vida?

Márcio Almeida é escritor

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